A “coisa em si” no trabalho de Alexandre Estrela.
A crítica tradicionalmente consistia numa das três abordagens: crítica 'impressionista', que se preocupava com os efeitos da obra de arte no observador - respostas individuais; crítica 'histórica', que lidou com uma evolução a posteriori de formas e técnicas - o que há entre obras; e críticas 'metafóricas', que inventaram inúmeras analogias - mais recentemente ao cientificismo. O que geralmente tem sido negligenciado é uma preocupação com o objeto de arte em termos de sua própria individualidade material - a coisa em si. ” Essa negligência pela materialidade do objeto, que Bochner refere, era já uma preocupação para os construtivistas russos desde 1913. Existiu então, a partir dessa época, um desenvolvimento construtivista na arte moderna ocidental. A partir dos anos 60, com o grupo Fluxus, os artistas do cinema estrutural, Andy Warhol, Richard Serra, Donald Judd, entre outros, esta sensibilidade pelo material e pelo objeto em si começou a ser, novamente, discutida. O trabalho de Alexandre Estrela é algo concentrado nessa questão da “coisa em si”, principalmente pelo design ou “overdesign” do objeto, conferindo-lhe, maior parte das vezes, uma nova forma. Isto é, a coisa em si transforma-se numa outra, numa alteridade. Em grande parte dos seus trabalhos, rejeita qualquer conteúdo diegético dando preferência ao estudo dos limites dos dispositivos e médium com que trabalha, focando-se sobre a perceção do espetador, tanto visual como sonora, a apropriação e ainda as fronteiras entre espaço e tempo. TV´s Back (fig. 1) é realizada em 1995. No ecrã da televisão é exibido um vídeo da parte de trás da própria televisão. Esta televisão perde a sua utilidade original. Este objeto já não pode ser encarado como um mero veículo para o vídeo. Paradoxalmente, é a imagem do vídeo que, ao não evocar outra realidade que não este objeto, acaba por sublinhar a sua própria materialidade e auto reflexividade. Alexandre Estrela parece comprimir para o mesmo plano a parte da frente e a parte de trás deste objeto. Se, por um lado, a sua “objetualidade” é sublinhada, por outro, parece desmaterializá-la, ao anular a sua tridimensionalidade. A divisão entre o que é real e o que é virtual é construída num continuum. Uma referência que podemos convocar para contextualizar este trabalho é a obra Images from the present tense de 1971 de Douglas Davis (fig. 2). Neste trabalho, Davis coloca uma televisão ligada com o ecrã virado para uma parede. Aquilo que vemos da obra é uma aura de luz, que é refletida na parede, e a parte de trás da televisão. No seu ensaio Film going/Video going: Making distinctions, o autor reflete sobre a ação de assistir a um vídeo - o nosso foco no ecrã pode ser interrompido por outra tarefa qualquer. Nos lares que possuem televisões, muitas vezes estas encontram-se ligadas independentemente de alguém estar a ver ou não. Funcionam como uma espécie de cura para qualquer sentimento de solidão/silêncio. A televisão e o seu alcance de elasticidade sempre variável, ilude-nos com a ideia de escolha e de coletividade. O que acontece em Images from the Present Tense assemelha-se à ideia de Tv's Back de mostrar o objeto da televisão por aquilo que ela é, retirando-lhe o seu uso habitual ao virá-la para a parede ou ao transmitir uma imagem da sua parte traseira. Note-se ainda a seguinte observação de Leonor Nazaré: “A oposição imaterial que existe entre o sinal aberto da televisão e o sinal fechado do vídeo é negada nesta obra e é substituída por um ecrã fechado às imagens do mundo e apenas aberto à sua grotesca presença de peça de mobiliário”. [2] Outro elemento relevante é o título Tv's Back, que tanto pode ser lido como “a traseira da televisão” ou “a televisão está de volta”. Visto que a televisão não desapareceu desde que surgiu, podemos assumir este “voltar” como um regresso da ilusão criada pelo uso a que lhe foi conferido voltando a ser apenas o aparelho tecnológico, o objeto. A autodefinição do médium, pretensão que era tão essencial para o modernismo, é neste caso bloqueada, quando Alexandre Estrela faz uso do material e dobra o mesmo sobre o seu virtual. Esta peça comporta, portanto, uma ironia suprema que, a nosso ver, é uma característica constante na obra de Estrela. Turquoise Hexagon Sun (fig. 3), consiste numa filmagem de um ecrã de televisor obsoleto apresentando deformações na sua imagem. O título da peça de Estrela corresponde ao título de uma música dos Boards of Canada. A propósito da escolha, por parte de Alexandre Estrela, de utilizar esse título, retiramos um excerto de uma entrevista a um dos membros da banda: Qual é o significado dos hexágonos para ti? Imaginando que por trás de cada um dos televisores, existe realmente um “feiticeiro”, composto por padrões matemáticos, o que a peça de Alexandre Estrela opera é não só o puxar da cortina para que tenhamos noção da existência desse feiticeiro como também das suas falhas. A imagem resultante é uma metáfora para quando a tecnologia falha e se transforma em algo disfuncional, mas ainda assim admirável.
O nome Hexagon Sun poderá ter surgido do número de lâminas que compõem a abertura da lente da câmara que influencia a forma do reflexo produzido, de modo que uma abertura de seis lâminas, por exemplo, produziria um efeito de reflexo solar hexagonal. Visto que Estrela está interessado no aparelho não só pela sua função, mas pelo seu design e componentes técnicas, este título acaba por ser bastante revelador. Outra curiosidade sobre a forma hexagonal, e que poderá ter sido também uma fonte de inspiração para o artista, está no cérebro: Paul Sharits, numa entrevista dada a Steina e Woody Vasulka (1977), conta um episódio em que foi agredido com sucessivas pancadas na cabeça. “A agressão criara o aparecimento de luzes e padrões hexagonais semelhantes aos padrões de Purkinje, que pessoas com enxaquecas crónicas dizem ver quando pressentem as suas dores de cabeça”. [4] Propomos um paralelismo entre a falha no aparelho e a falha no cérebro. A televisão que por já não funcionar na sua totalidade e que é levada ao seu limite apresenta uma luz e formas irregulares, tal como o cérebro que, quando sofre um trauma ou é instigado por estímulos exteriores, nos apresenta sintomas visuais fora do comum. Alexandre Estrela, nesta obra, faz-nos refletir sobre as possíveis imagens dessas irregularidades que poderão ocorrer no nosso cérebro, mas do ponto de vista de uma televisão. Estrela pretende que a televisão passasse a ser capaz de sentir, como um ser humano. Ou seja, a televisão é um cérebro e o vídeo é o sintoma. Não será a última vez, no trabalho do artista, que será possível observar um lado performativo oferecido pela nossa perceção do aparelho. Existe um outro detalhe que é importante referir. Ainda que se saiba que esta é a representação de uma televisão, não nos devemos esquecer que essa imagem foi gravada em formato vídeo. Tenha-se, portanto, em conta a data que se encontra no canto inferior direito da projeção. Esta é uma decisão tomada pelo artista, a de não esconder essa informação. A data representa o momento em que aquela imagem foi gravada, a 20/06/1996, definindo o momento em que a televisão “morreu”. Como a data que é inscrita na lápide. Daí que o vídeo resultante pode ser tido como um registo da performance da televisão, que será (provavelmente) a última. [1] - Bochner, Mel, “Serial Art, Systems, Solipsism”, em Minimal Art: A Critical Anthology, (Nova Iorque: E. P. DUTTON & CO., INC, 1968) 93.
[2] - Nazaré, Leonor, “Tv´s Back” (publicado no site oficial do Museu Calouste Gulbenkian, 2013). [3] - Mulvey, John, "The Secret Life of Boards of Canada" ( entrevista a Marcus Eoin, NME, 2002), https://bocpages.org/wiki/Turquoise_Hexagon_Sun. [4] - Estrela, Alexandre, “Viagem ao Meio: Meio Concreto”, (tese de doutoramento pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, 2016), 76. |