antes (da) morte que tal sorte: ou sobre formas de estar.
ensaio.
Por André Ramos 22-12-2020 O cipreste tem sido durante os tempos, elemento capaz de acolher uma numerosa simbologia desde a vida à morte, à determinação e à independência, entre outas deleitosas contradições. É particularmente interessante, nesse sentido, que o cipreste tinha sido a árvore escolhida para ladear os percursos internos do cemitério da minha infância – como de tantos outros cemitérios. Ou talvez não. Se há sítio onde este quadro simbólico se assume como urgente, é precisamente nos espaços da morte. A minha memória do cipreste é então esse momento afirmativo de contraponto à dor e ao desconforto, enquanto pausa visual a uma arquitectura funerária de estilo prático. Nesta outra dualidade simbólica, emerge uma discussão de difícil acesso: o momento antes da morte. “Sofrer vai ser a minha última obra”. Há um verso de Paulo Leminsky que nos fala sobre aquele momento que antecede o fim e que o poeta quer para si. Terá querido dizer que o quase-fim ainda não é espaço da morte, mas é seu momento. A Séneca - figura máxima do estoicismo helenista, perceptor do tirânico e sanguinário Imperador Nero - foi solicitado o suicídio. Independentemente das injustiças e loucuras do seu mandante, o filósofo romano acedeu, com a mesma naturalidade e neutralidade que acederia a qualquer outro pedido. No Museu do Louvre, uma imagem romana do século II esculpida em mármore negro, mostra-nos Séneca, nu, fisicamente fragilizado, exposto, de pulsos cortados a aguardar o momento da morte dentro de uma taça com seu próprio sangue. Se o dramatismo deste último traço descritivo nos poderia levar por caminhos de desconforto, a expressão serena do rosto do filósofo acalma-nos. Séculos depois, Rubens, o grande pintor religioso que nos legou a surpresa da Catedral de Nossa Senhora de Antuérpia, dedica-se igualmente à morte de Séneca (1615). Dotado de uma maior mestria técnica que os seus antecessores, o pintor barroco não gozava das mesmas liberdades de concepção. Peter Paul Rubens não podia apresentar o suicídio (nem a genitália), os romanos sim. O pintor barroco chamou para a composição, um médico e um pano para cobrirem o suicídio (e a genitália). “Olharei a morte com o mesmo ânimo com que tenho ouvido falar dela”, poderão ter sido estas as últimas palavras de Séneca. Se é verdade que as palavras são suas, não será certo que as terá repetido no momento final. Espaçadas de vários séculos, as representações do mestre da stoa coincidem na virtuosa serenidade, “sem sofrer nenhum abalo”, tranquilamente liberto da dor. Séneca morreu como um cipreste vive, com a certeza inevitabilidade e a força necessária ao seu cumprimento. Séneca só poderia ter morrido sem dor, consciente da sua natureza mortal. Tal como Sócrates, aquele que é - talvez injustamente - o mais famoso filosofo clássico. Jacques Louis David, em 1787, para ilustrar a sua morte, elege a representação do desespero da assembleia de amigos e seguidores, em contraste com a serenidade do mestre que quer ter - tal como Lemisnk – como o dedo o afirma, uma última palavra no momento da dor. O personagem em primeiro plano, não consegue sequer olhar para o copo com a cicuta, ainda que fielmente o segure. O choro, enquanto reflexo físico involuntário, apodera-se da figuração. David representa-nos a dor, mas não a dor de quem vai morrer. É o desespero dos seguidores de Sócrates que nos inquietam. O candidato ao fim, mantém-se impenetrável. Como se representa este momento último antes do fim? Quem melhor o fez senão Bergman no Sétimo Selo (1957), através um derradeiro jogo de xadrez? Habituámo-nos a dar um rosto à morte, branco, masculino e calmo. Habituámo-nos a dar um espaço ao antes da morte, um tabuleiro axadrezado. Habituámo-nos a dar um tempo ao final da vida, um tempo tão impossível de calcular pela sua imprevisibilidade, como o tempo de um jogo de xadrez. Mas se é o filme de Ingmar Bergman que nos vem à memória quando pensamos naquele momento último de espera, tal se dará a um prático exercício de selecção cronológica. Se há temática de repetição na história da arte é precisamente a representação dessa ceia última, onde Cristo, aquele que vai morrer (e que o sabe) repete a mesma tranquilidade dos filósofos, não fosse este - ou a sua memória, mais ou menos ficcionada - neles inspirado e às suas práticas ascetas submetido. O Museu Machado de Castro, aqui tão perto, lega-nos os restos da Última Ceia de Hodart (1534). Um conjunto de homens em terracota decadente - que mais parecem guerreiros do que santos - aguardam, numa sala escura, a espera de uma mesa que se perdeu pelos tempos. Em qualquer Última Ceia, é a mesa que confirma ao espaço a predisposição para o momento da espera. Desprovidos de objecto simbólico, os apóstolos parecem eternamente perdidos numa catarse sem referente. Sem mesa, o momento que se quer de espera transforma-se em momento em espera. “Diante da morte o importante é estar”. Tão incorpóreo como confiante e iniciador de possibilidade é este verso de Rui Caeiro. O que é estar quando diante da morte? Como devemos estar diante da morte? Serenos como os filósofos? Resistentes como o cavaleiro Block de Bergman (que pede tempo)? Esperançados como os apóstolos? Só há uma forma de o descobrir e atrasá-la é o melhor (e o menos doloroso) dos métodos. Neste tempo pandémico, em que o espaço de espera da morte – negativamente íconizado através dos lares de idosos - tem estado tão, simultaneamente, presente e questionado, ausente e desresponsabilizado, não nos esqueçamos da dureza das palavras do também poeta, Tolentino de Mendonça, ao compará-los à frieza utilitária dos “parques de estacionamento” diante da morte. Ocuparmo-nos deste último espaço será a nossa última tarefa, a nossa última obra. Se só a arte, a poesia e a filosofia podemos ter como companheiras nesse solitário momento final, temos então o nosso espaço bem compartilhado. Interessa-me pensar que no Jardim da Morte (1896) de Hugo Simberg, ao fundo, talvez aqueles troncos possam anunciar um cipreste. Porque há sempre tempo para cuidarmos do nosso jardim. Nem que seja mesmo antes da morte. - Um texto de André Ramos. 22-12-2020 |