El Cid e Al-Mutamid, duas criações literárias da Península Ibérica Medieval.
consideração.
Por Afonso Matos 12-12-2020 Nos anos de tensão que antecedem o início da “Reconquista Cristã” são produzidas, no espaço da Península Ibérica, duas obras literárias que nos ajudam a compreender alguns dos mais importantes acontecimentos deste período histórico: o Cantar de Mio Cid, texto que tem por base os feitos de Rodrigo Díaz de Vivar, e a obra poética do rei da Taifa de Sevilha Al-Mutamid. Apesar das diferenças entre estes dois textos podemos, hoje, considerá-los produto de uma mesma sociedade e usá-los como ponto de partida para pensar alguns dos conflitos que eclodem na Península Ibérica a partir do século XI. A vida destas personagens históricas cruza-se, curiosamente, no momento em que El Cid é enviado por Afonso VI para coletar impostos, acabando por ajudar Al-Mutamid a enfrentar os mouros de Granada e por ser recompensado com um tesouro pessoal que o levará ao desterro. Ao comparar as biografias do Cid e Al-Mutamid com as identidades edificadas em cada um dos corpus literários, podemos questionar o papel que desempenham tanto os atores históricos como os textos, de que modo estes circulam e participam nos processos de transformação da cultura, da língua e da civilização do seu tempo. O mundo muçulmano do Al-Andalus no século XI Na primeira metade do século XI a guerra civil (fitna) - que se prolonga de 1009 a 1031 - conduz à fragmentação do Califado Omíada da Península Ibérica, dando lugar à instauração de reinos Taifa de língua árabe, onde se tentará replicar o poder califal, a sua simbologia e rituais próprios a uma escala menor. A destruição, em 1010 da Medina Azhara, erguida pelo primeiro califa do Al-Andalus, constitui um passo claro no sentido de por um fim ao poder de um governo centralizador. O Al-Andalus não será capaz de se unir sob domínio o político islâmico até à chegada dos Almorávidas. Em 1023 Sevilha declara-se independente sob a liderança de Banu Abbad. Os seus herdeiros expandirão o território deste reino Taifa, tornando-o um dos mais importantes espaços de domínio muçulmano na península ibérica, a par do reino de Granada, Toledo e Badajoz. A decadência do poder do Califado de Córdoba coincide com a perda de influência andaluza no espaço do Magrebe, onde os Califas haviam intervido com intenção de travar a ameaça dos Fatímidas do Cairo, controlar territórios do norte de Marrocos e estabelecer alianças com líderes berberes. A implosão do poder político andaluz dita o fim da intervenção dos reinos peninsulares na área do Magrebe e a situação irá inverte-se com a ascensão do poder Almorávida. Em 1069 Al-Mutamid, filho, assume o reinado da Taifa de Sevilha. O território sobre o qual exerce o seu poder, que havia sido aumentado pelo pai, constitui um dos mais importantes centros de poder ibérico. O rei poeta – como ficou conhecido - procurará afirmar-se no seio de uma sociedade andaluza ameaçada tanto pelo poder cristão a norte como pela ameaça almorávida a sul. Al-Mutamid nasce numa sociedade onde o trabalho da língua, da música e da poesia serve a afirmação das elites locais, de uma cultura e historiografia própria. Os Califas do Al-Andalus, por exemplo, sempre procuraram acolher músicos, escritores e filósofos provenientes do resto do mundo árabe. Zyryab, um dos casos mais notórios, veio de Bagdad para se fixar em Córdoba sob patrocínio do califa Abderrahman II. Também no oriente o poeta Ferdusi, procurava – nas últimas décadas do século X e nas primeiras do XI – consolidar a língua persa e a afirmar cultura iraniana pré-árabe, com ecos do zoroastrismo, edificando, ao longo da sua vida o Livro dos Reis. O trabalho poético de Al-Mutamid pode, deste modo, ser lido como último folego de uma cultura muçulmana do Al-Andalus prestes a enfrentar desafios e mudanças substanciais com a entrada em cena de novas forças políticas oriundas do mundo cristão e almorávida. Reis Cristãos na Península Ibérica A divisão do território do Califado em vários reinos Taifa resulta numa perda de eficácia muçulmana no controlo das fronteiras e no confronto com as forças militares cristãs do norte da Península Ibérica. Fernando I de Leão, consegue no ano de 1037 unir os reinos de Leão, Castela e Galiza com uma só liderança. Sob seu comando serão anexadas as cidades de Viseu e Coimbra. Fernando chegará a proclamar-se Imperador, de modo a demarcar-se da influência do Sacro Império Romano-Germânico. Durante décadas os reis da cristandade obrigarão os reinos Taifa muçulmanos a paga-lhes largas somas de dinheiro como tributo pela paz. A transferência de riqueza do sul para o norte da Península Ibérica terá como consequência uma perda das reservas de ouro da civilização muçulmana do sul. A unificação dos reinos cristãos conseguida por Fernando I será posta em causa pela divisão do território entre os seus sucessores, em 1065. Sancho II torna-se Rei de Castela, Afonso VI Rei de Leão, Garcia Rei da Galiza e Portugal. Através da oposição de forças internas assiste-se a um período de confronto entre os herdeiros de Fernando que acabará por levar Afonso VI ao poder, após a morte em batalha do seu irmão Sancho. Os problemas de sucessão e legitimidade que Afonso VI enfrenta estão na base da oposição de senhores de guerra como Rodrigo Díaz de Vívar, conhecido por El Cid, que tendo apoiado Sancho II, vê a sua relação com o novo monarca deteriorada, ao ponto de este lhe impor o desterro. É precisamente com o episódio do desterro de Cid que começa a narrativa do Cantar de Mio Cid. O facto do texto surgir sob a forma de uma canção de gesta poderá revelar algumas afinidades para com a cultura do norte da europa, nomeadamente a Canção de Rolando. Apesar disso, a construção das personagens e a escolha do castelhano como língua apontam uma matriz regional, que só poderá ser compreendida tendo em conta o contexto multicultural da Península Ibérica do século XI, um mundo onde o convívio, o comércio e a permeabilidade entre a cultura cristã e muçulmana é evidente. Essa cultura de convivência faz-se notar quando comparamos a representação do “outro” muçulmano na canção de Rolando – onde os nomes árabes surgem deformados e fantasiados – à naturalidade no tom com que os muçulmanos são tratados na gesta do Cid. O avanço para sul das forças de Afonso VI, na eminência do confronto com o poder Almorávida, torna o cenário político mais polarizado, dificultando a livre circulação dos vários agentes culturais pelo espaço do Al-andalus, assim como a receção e o acolhimento na corte dos reinos Taifa de mestres vindos do oriente, como havia sucedido nos séculos anteriores. A batalha de Zalaca, que ocorre 1086, marca um momento claro de mobilização militar de todas as forças em jogo na Península Ibérica. A vitória Almorávida não deixa de motivar um reacender do esforço cristão no sentido de conquistar o território sob domínio muçulmano, algo que só será conseguido integralmente com a conquista de Granada em 1492. Al-Mutamid e El Cid Campeador A gesta de El Cid, reunida no Cantar de Mio Cid, e a obra poética de Al-Mutamid possuem diferenças claras, sendo cada uma dotada de objetivos singulares e de um contexto específico de criação. A primeira, produzida em castelhano antigo, chega-nos através de uma fixação em texto que atua no sentido de uniformizar a multiplicidade de versões que estarão na sua origem. A segunda, escrita em árabe, foi produzida por um rei em pleno exercício das suas funções, que não só tornava públicas as suas composições, como as lia nos serões do palácio, competindo com os demais escritores e declamadores da sua corte. Os atores históricos que nos falam através destas duas obras literárias não estão assim tão distantes, tanto geograficamente como na sua relação com o poder vigente, sendo ambos produto de uma sociedade e cultura andaluza que se estende com nuances e variações pelo espaço ibérico. El Cid e Al-Mutamid assumem uma posição marginal em relação às dinâmicas de confronto entre os grandes poderes do norte e do sul, luta na qual ambos se encontram envolvidos, embora mantendo um distanciamento e uma noção de identidade própria que leva à produção, a seu tempo, destas duas obras singulares. A poesia de Al-Mutamid espelha o aprimorar da cultura de corte ao longo de séculos no espaço do Al-Andalus. A itinerância que o rei poeta viveu na juventude, habitando em Beja e Silves antes de Sevilha, constitui uma base para o seu conhecimento direto do espaço do Gharb (origem da palavra Algarve), assim como da cultura própria do Al-Andalus e dos seus poetas, entre os quais Ibn Amar, que conheceu em Silves. Os temas postos em jogo na escrita de Al-Mutamid deixam entrever o confronto com a doutrina rígida e o estilo de vida dos Almorávidas, oriundos de um mundo diferente marcado pelo deserto. Os louvores do vinho lembram o Rubaiyat de Omar Kahyyam – escrito na pérsia da segunda metade do século XI – há na escrita do rei poeta a sensação de uma liberdade e de um estilo de vida festivo na eminência do fim. Esse final abrupto de um período de efervescência cultural, de uma política de mecenato e de um ritmo constante de celebrações na corte e nos palácios de Sevilha, dá-se com a tomada de Toledo pelas forças cristãs e pela consequente chamada dos Almorávidas por Al-Mutamid, que liderará o exército do seu reino Taifa, participando na batalha de Zalaca. Após a vitória na batalha de Zalaca, Yusuf Ibn Tashfin volta ao Magrebe para assegurar a descendência do império Almorávida e quando regressa à Península Ibérica não concede aos reinos Taifa a autonomia que lhes foi dada no primeiro momento da sua vinda ao Al-Andalus. A integração dos reinos Taifa sobre a esfera de poder Almorávida será total, salvo raras exceções que possam subsistir na fronteira a norte. Al-Mutamid é, então, conduzido ao cativeiro em Agmat onde morrerá em 1095. O Cantar de Mio Cid pode ser lido como uma obra crítica de Afonso VI. As virtudes do Cid, apresentado como homem de palavra, generoso, poderoso guerreiro e estratega, parecem afirmar-se em oposição ao poder régio, sem que El Cid deixe de prestar os devidos tributos ao rei, enviando-lhe tesouros resultantes do seu saque, e de pedir o seu consentimento na altura do casamento das suas filhas. Um verso que demonstra bem a ambiguidade na relação entre Afonso VI e El Cid, surgindo mais do que uma vez ao longo do texto, é o seguinte: - Oh Dios, qué buen vassalo si tuviese buen señor! A explicação para o prestígio da figura de um senhor de fronteira como El Cid reside talvez no poder aglutinador que ele representa, levando uma vida dedicada à guerra da qual beneficiam os seus seguidores, aproveitando-se dos saques conseguidos em batalha e de terras que passam para as suas mãos. O Cantar de Mio Cid trata longamente a sucessão de vilas e cidades que El Cid toma pela força das armas até ao momento – na terceira parte do livro – da conquista de Valência. Como senhor de Valência, El Cid não deixa de intervir no cenário político da península ibérica, a terceira parte do cantar fala, por exemplo, de um ataque ordenado por Yusuf Ibn Tashfin, a que Valencia resistirá. Há também o relato da expedição liderada por Alvar Fañez Minaia – braço direito do Cid – que parte em auxílio de Afonso VI, reforçando o seu contingente na Batalha de Zalaca. A figura de El Cid afirma-se, assim, como símbolo de uma cultura moçárabe que teme, no seio dos conflitos do século XI, perder o seu lugar e espaço de intervenção política. A sua independência face ao poder cristão não é total, embora a comunidade liderada pelo Cid goze de certos privilégios devido ao papel de defesa da fronteira que exerce até à morte do seu senhor. «Faz circular a taça que o zéfiro matinal começa a fazer-se sentir e as Plêiades detiveram a sua cavalgada noturna. A aurora ofereceu-nos a sua brancura e a noite afastou de nós a sua obscuridade» - Poema de Ibn Amar em louvor de Al-Mutamid. A existência de senhores de fronteira preponderantes, como El Cid e reis muçulmanos de um território Taifa autónomo, como Al-Mutamid, poderá explicar o nascimento de obras que gravitam em torno da centralidade destes mesmos senhores, da sua preponderância cultural e da sobrevivência de velhas tradições que através deles operam, opondo-se às narrativas que circulam na corte de Afonso VI ou àquelas que constituem a base ideológica do império Almorávida. A memória de Al-Mutamid, lembrado como rei poeta, assim como a de Rodrigo Díaz de Vívar, o Cid, remete-nos para uma ideia de grandiosidade associada ao período das suas vidas que crescerá com os séculos, tornando-os figuras míticas de um passado comum que, embora transformado pelo poder régio que será o de Leão, Castela e Portugal, chega aos nossos dias devido ao cuidado empenhado na preservação dos textos e tradições narrativas que lhes subjazem. - Um texto de Afonso Matos 12-12-2020 |