Espanha das Espanhas: a viagem como metanarrativa de imagens.
Há uma promessa nómada neste livro e nestas Espanhas da Espanha. Estabelece-se um espaço vital, de paragem em paragem, encontramos em cada imagem a realidade fixada pela palavra escrita. O livro de João Sousa Cardoso é, por isso, um monumento do nosso tempo, admiravelmente impresso, deixa-nos o registo de um itinerário, romaria do homem culto contemporâneo, em vez de circuitos peregrinos ou da fantasia romântica do Grand Tour. É uma viagem lúcida entre temporalidades que deixam vestígios numa narrativa de aparições matéricas pela encruzilhada das cidades, obras de arte, objetos sacros que nos fixam desde um passado distante, promessas de glória e redenção ou recuerdos de fantasmagoria. E isso diz-nos um pouco sobre nós, como fechamos em museus as relíquias que remontam à fundação da tribo, de um povo, de uma nacionalidade. Estamos em Granada, onde as referências à cultura do Al-Andalus são tão visíveis, prostrados em frente à Alhambra. Nas ruas de Sevilha, porto ao qual chegavam os galeões carregados das américas. Em Toledo, onde atestamos a maturidade de uma irrupção multicultural. São lugares que também nos dizem respeito, porque partilhamos com eles os processos históricos que são ibéricos, europeus, mundiais. Deparamo-nos com uma cultura artística e religiosa do Sul que resulta da expansão do Islão, do Judaísmo, da Cristandade e se afirma com uma identidade própria, dotada das suas virtudes e naturais abjeções. Neste nosso tempo onde grassa a divisão e as pétalas do império foram sendo uma a uma colhidas, resta-nos o gesto político da união, o conhecimento do outro – que neste caso está tão perto - através da viagem. Quebrar as barreiras entre países significa uma abertura que merece ser celebrada, a viagem é um evento do conhecimento. Assim devemos continuar a entende-la numa altura em que ela se tornou mais complicada e inacessível. Estas Espanhas da Espanha não se fecham sobre sí, como a Jangada de Pedra que Saramago lançou à deriva no Atlântico, elas participam na Europa e, tal como Portugal, a sua língua vai além da geografia e das fronteiras físicas. Dos quadros inundados de luz de Joaquín Sorolla, ao imaginário irredutível de El Greco ou à correspondência particular do assassinado Garcia Llorca com alguns dos nomes maiores do surrealismo, são vários os objetos onde nos demoramos. Curioso, como muitas destas obras se podem encontrar em lugares periféricos, pequenas casas-museu e igrejas municipais. Também deste modo se afirma a multiplicidade e se distinguem algumas das nervuras desse passado cultural ainda habitado. A narrativa de viagem acaba por dar lugar a um outro panorama, constituído pelos diversos estratos temporais observados, mas também pelas vicissitudes individuais e coletivas de 2011, ano em que decorre o percurso descrito no livro. É na confluência dos monumentos, obras de arte e arquitetura com o respirar desse mundo vivo dentro de páginas que podemos encontrar formas vivas que atravessam – quase inalteradas – o tempo, nas palavras do autor, ou a natureza das próprias cidades, uma vez mais, visitadas. Por tudo isto o livro de João Sousa Cardoso, publicado pela Book cover, poderá ser percorrido em toda a sua extensão, dando-nos a ver o “outro” em nós próprios, permitindo-nos viajar sem sair de casa. E ao voltarmos a abrir os mares sem fim que se estendem sobre o recorte de Portugal no mapa, talvez seja possível observar além, ver os vários Portugais que o compõem e esta costa como o lugar de tantas partidas e chegadas que ela, ainda, representa. |