Hipérbole da Sedução: como o hiper-espetáculo persiste como modalidade através dos diferentes tempos e media.
Descrito pela primeira vez em um estudo de 1949 realizado por Joseph Campbell “The Hero with a Thousand Faces”, o 'Monomito' é um conceito que elucida a jornada cíclica do herói (ou personagem principal) presente nos mitos. Desde primórdios na Antiguidade Clássica, os heróis das narrativas e seus respectivos arcos apresentam padrões em suas jornadas, que a partir de diversas situações, encontros e desencontros, constroem o caráter do personagem e apresentam para o público as nuances de personalidade daquele indivíduo. A jornada do herói pode ser vista em diversas produções artísticas (nesta palavra engloba-se literatura, cinema, fotografia, etc.), por se tratar de um dos principais recursos narrativos da tradição mítica greco-latina. Tal conceito pode ser visto em histórias como a de Édipo Rei, Hércules, Jesus Cristo, Hamlet, William Wallace, Indiana Jones, Neo, etc. Todos eles heróis que desenvolvem-se diante dos espectadores em suas respectivas particularidades, a partir das camadas, fases e desafios do 'Monomito'. Por se tratar de um arquétipo universal (dentro do imaginário ocidental), a jornada do herói é um eficiente artifício para que o público reconheça naquele personagem toda a gama sentimental de uma pessoa real, por conta de provações físico-emocionais que revelam seu caráter vagarosamente, em arcos temporais já conhecidos pelo espectador. O 'Monomito' é uma fórmula tão poderosa que devido a criação de tamanha empatia pelo personagem, o público poderia até acreditar que o personagem pudesse existir fora da história, ou mesmo fazer com o que o espectador se enxergue como o herói e principal fio condutor daquele mundo. Esta hipótese é sedutora, e denota a apreensão total do espectador até que a história acabe, e as cortinas se fechem. Se a promessa não for instigante o suficiente, o público levanta-se e revira os olhos. Entretanto, para o mito existir, para a mensagem subsistir, ela precisa ter importância para o receptáculo (Saussure, 2016), como então o mesmo herói tem mil faces? Como o público ainda depois de milênios sente empatia pelas mesmas histórias? A resposta não é sobre a história em si. Mas como ela é contada. No recorte indo-europeu ocidental, a narrativa das histórias atravessou paralelamente o desenvolvimento dos media concatenado com a evolução tecnológica. Factor este determinante para a adequação da já mencionada jornada do herói e os tantos outros recursos narrativos aos olhos, ouvidos e praticamente todos os sentidos dos contemporâneos. “O signo hiperbólico da sedução” (Lipovetsky & Serroy, 2014, p.262) é uma consequência da adaptação das histórias aos tempos e media. Não que esta adaptação tenha sido orgânica, ou simples. Pelo contrário, existe, desta forma, um mecanismo complexo que se beneficia desta dinâmica por trás. A indústria cultural é um conceito criado por Adorno e Horkheimer a partir de 1940 na Escola de Frankfurt como uma forma de entender o capitalismo e a capitalização da cultura. De acordo com o pensamento, as atividades culturais seriam absorvidas pelo mercado, que por sua vez teria a intenção de atingir o maior número de pessoas possível (pluriclassismo) através da homogeneização do conteúdo. Ou seja, a cultura se tornou um alicerce para a lógica do mercado – facto inédito aos séculos anteriores e possível somente pelo desenvolvimento da tecnologia e da industrialização das produções culturais. Neste contexto, fabricam-se heróis, como sapatos, bolsas e bens de consumo não duráveis. A problemática envolvendo a fabricação de narrativas obedecendo à todas as instancias de confecção, como a de um produto, é justamente o desenvolvimento de uma cultura de massas. Segundo Hannah Arendt, em A Crise da Cultura, 1961: “a cultura é destruída para produzir entretenimento’ ideia que consiste na supressão da individualidade criativa em detrimento da lógica de mercado, que visa o lucro. Em que, “os meios de comunicação de massa [por exemplo,] esgravatam toda a gama de cultura passada e presente na ânsia de encontrar um material aproveitável” (Arendt., 1992a, p. 259). Como uma grande receita de bolo, em que se adicionam as mesmas quantidades de ovos, farinha e leite, por mais que as vezes o chocolate seja substituído pela canela, a premissa se mantém – os factores comuns. Esta analogia da fórmula para o êxito é repetida pelos grandes estúdios cinematográficos americanos até os dias de hoje, mais de meio século se passou e a tendência continua em voga? Mas porquê? O perdurar desta lógica de mercado justifica-se pelos factores essenciais do sucesso de um blockbuster: Um herói que desenvolve uma relação com o público, preferencialmente previamente existente em uma história “famosa” e finalmente cenários apoteóticos. O filme "The Ten Commandments" dirigido por Cecil B. DeMille em 1956 trata-se de uma refilmagem de outro filme realizado pelo mesmo autor em 1923, que narra a história do herói bíblico Moisés. "Godzilla II: O rei dos monstros" foi realizado por Michael Dougherty e teve sua estreia no ano de 2019. Sendo o 30º filme protagonizado pelo kaiju (subgênero de monstros gigantes popularizado pelo mesmo). Ambos os filmes, apesar de contar com enredos distantes, assim como Urano e Marte, fazem parte do mesmo cosmos industrial de produção de cultura. Protagonizados por heróis conhecidos pelo público em narrativas com orçamentos astronômicos dignos de grandes produtoras, entre raios lasers e mares divididos, a premissa é a mesma – o hiper-espetáculo do lucro. Para fugir da hipérbole da sedução, e do massacre da cultura como expressão individual, ou de um grupo, é preciso contarmos as nossas próprias histórias, de heróis ou não. -
Livros: Adorno, T., Horkheimer, M., & Almeida, G. (2006). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar. Arendt, H. (1992) A crise na cultura: sua importância social e política. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Nova Perspectiva. Campbell, J. The hero with a thousand faces. New York: Pantheon Books. Lipovetsky, G., Serroy, J., & Inzerillo, A. (2015). A estetização do mundo – viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras. Saussure, F., Bally, C., Sechehaye, A., Urbain, J., & Riedlinger, A. (2016). Cours de linguistique générale. Paris: Éditions Payot & Rivages. Filmes: The Ten Commandments (1956) [Registo vídeo]. EUA: Paramount Pictures Godzilla II: O rei dos monstros (2019) [Registo vídeo]. EUA: Warner Bros Studios - Um texto de Maria Eduarda Wendhausen. 21-01-2021 |