León Ferrari: 'Autopista del Sur', uma das veias abertas da América Latina.
Uma autoestrada, seis mil carros em um trânsito intenso que não foi formado por um acidente fatídico, ou mortes pesarosas, somente um excesso de vidas que partilham a mesma via. Cada uma em seu veículo, sua caixa de fósforos particular. Seria esse o retrato do epítome da coletividade, ou a máxima da solidão? Por mais que com destinos diferentes, cada um dos mundos envidraçados percorre o mesmo caminho. Atravessam as mesmas obstruções, e provavelmente, acionaram os travões em medidas semelhantes aos demais transeuntes deste mesmo universo. Em 1981, León Ferrari, argentino de Buenos Aires, concebe "Autopista del Sur" que remonta em sua ciclicidade linear a metáfora das vidas engarrafadas. Ferrari, em sua filosofia particular, acredita que os artistas podem realizar dois tipos de Arte. A inofensiva, responsável por poucos atos desatadores de pensamento, e a contra. Contra poder, contra autarquias; vernáculos, paradigmas, religião. Incumbida de, segundo Ferrari, "ser catalisadora de opinião e imaginação de quem a vê". Admirar o terrível para construir espaços se torna o único dogma de León Ferrari. Seu establecimiento é ser contra o establishment. "Autopista del Sur", é um diazótipo em papel que age como um retrato da América Latina. A região, delineada por tempos passados e obscuros, reflete o paradigma de uma existência conflituosa e que já fora mortal aos seus. "Essa triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata, e seguiu com o açúcar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, o estanho, a borracha, o cacau, a banana, o café, o petróleo... O que nos legaram esses esplendores? Nem herança nem bonança. Jardins transformados em desertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, aguas estagnadas, longas caravanas de infelizes condenados a morte precoce, e palácios vazios onde deambulam os fantasmas. [...] O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?" (Galeano, p. 05-07). Região, religião, revolta, recambiada, remonta, recorda, resinifica.
A "Autopista del Sur" rumina a ciclicidade da vida do latino americano. As imposições da realidade, os padrões cruéis e os caminhos abertos na terra pela violência. Estradas que limitam o espaço e estrangulam o fluxo de pensamento livre. A infinita roda da revolta.
Em 1964, o também argentino Júlio Cortázar escreve o homônimo sucesso "Autopista del Sur". No livro, acompanha-se o enredo de um engarrafamento em uma autoestrada francesa após um acidente em direção à Paris. Os personagens são encarcerados pela situação irreversível em que se encontram, forçados a existir momentaneamente entre o espaço limitado de seus carros e o dos veículos vizinhos. A metáfora constrói famílias sem nomes, que respondem somente ao modelo do carro em que residem. Entre Peugeots e Fords, o capital existe em detrimento da perda da individualidade. Na obra de León, o tempo passa devagar, e as imposições do ambiente reverberam pelos vidros dos automóveis, como uma grande orquestra cruel nos ouvidos dos espectadores. A música, longe de ser latina, com contornos europeus e sotaque americano, ensurdece e cala as vozes do sul. Apesar de tentarem se desacorrentar, são forçados a comprar o próprio ingresso, que, entretanto, faz falta e reflete na mesa no dia seguinte ao espetáculo. A América Latina sempre quis ser sujeito, mas sempre foi objeto, como bem explicita e indaga Galeano, ‘‘exportamos produtos ou exportamos solos e subsolos? ’’ (p. 06). Cenários cruéis e episódio sangrentos que contrastam com terras férteis e multiculturais. Em que as veias são, senão, o eterno cotidiano de um ambiente de incertezas em um solo que fora castigado pelo tempo. Abertas pelos Outros, mas que um dia poderão ser fechadas. Em uma nova via, aberta fora da curva para novos futuros, em que o sangue latino poderá talvez parar de escorrer. Referências Bibliográficas:
Recurso digital:
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