Literatura-Mundo: Alguns aspetos de "O Meu Nome é Vermelho" de Orhan Pamuk.
É raro vermos um prémio Nobel atribuído a línguas periféricas, situadas fora dos circuitos comerciais e dos lugares de destaque da literatura-mundo. Se, em 1998, Saramago conseguiu o primeiro para a língua portuguesa, Orhan Pamuk foi, também, o primeiro escritor turco a consegui-lo em 2006. O Meu Nome é Vermelho é uma prova da extraordinária qualidade deste autor que constrói, com a sua obra, uma ponte entre o ocidente e o oriente, o passado e o presente, a pintura e a escrita.
A narrativa do livro transporta-nos para uma Istambul do século XVI, onde um atelier de miniaturistas se vê dividido entre o estilo da arte persa e o novo estilo de representação ocidental, trazido pelos venezianos. Os crimes e o romance que marcam a ação da estória remetem para uma escrita policial ou histórica, que Pamuk reinventa e desconstrói ao incluir técnicas narrativas pós-modernas como a consciência dos sucessivos narradores do seu lugar de personagens – ou miniaturas – de um livro, a inclusão de elementos da Istambul em que vive o autor e de nomes de personagens que correspondem aos membros da sua família. Desde o primeiro capítulo, em que somos confrontados pela voz de um miniaturista assassinado - algo semelhante a um Brás Cubas de Machado de Assis – passando pelos capítulos que dão voz às próprias ilustrações - cão, árvore, moeda, cavalo… – é evidente um excesso de consciência que abre o tempo da ação para trás e para a frente, como se os narradores falassem em ambas as direções. Ao construir as personagens como um grupo de artistas que se situa sob patrocínio do sultão otomano, seria de prever que surgissem alguns dos problemas decorrentes do contexto islâmico e da proibição da adoração de imagens. Estabelece-se, assim, uma relação complexa entre este grupo e o meio social em que ele se insere, algo que podemos também encontrar na figura do artista em Balzac ou Proust, mas que se aqui se adensa pelas limitações impostas pela religião. Usada como medida da fé dos miniaturistas, a cegueira surge em inúmeras parábolas que evocam a graça ou a maldição com que a encaravam os velhos mestres. A escola de Herat, que floresce sob patrocínio dos soberanos Timúridas, é olhada como o expoente dessa sabedoria antiga e a cegueira do artista Bihzad um exemplo de virtude. O versículo do Corão “O cego e aquele que vê não são iguais” é interpretado de diversas maneiras pelos artistas de Istambul. Assomados pelos dilemas causados pela falta de valorização do seu trabalho, a cegueira poderá ser uma dádiva se, após anos de trabalho, impedir um artista de se vergar a um novo soberano ou a um novo estilo. A intriga que acelera os acontecimentos da narrativa explora o conflito entre o novo estilo de pintura “veneziano”, cuja representação parte da perspetiva humana e procura dar forma aos traços característicos de cada indivíduo, e o estilo dos miniaturistas persas da escola de Herat, Tabriz, Shiraz ou Samarcanda, assente na percepção do mundo segundo uma perspetiva divina - como se fosse deus a observá-lo – partindo das estórias de livros como o Shahnameh de Ferdusi, da poesia de Nizami ou dos livros que celebram o reinado dos sultões otomanos, para um tipo de ilustração que se centra em heróis e figuras-tipo, através da representação não de um homem em específico, mas do sentimento de humanidade, como se cada homem pudesse ver-se na imagem. O fascínio pela pintura que marca cada uma das personagens torna-se tangível e contagia o nosso olhar através da descrição das imagens e dos livros dentro do livro a que Pamuk dá vida. Do trabalho do lendário Bihzad, à paciência com que um ilustrador desenha cada folha de uma árvore ou à perceção do estilo consagrado por certo atelier, são várias as páginas decididas à beleza que se pode encontrar no dia a dia da vida de um artista. Mas também as disputas, os jogos de influência, a inveja e as relações de poder fazem parte deste mundo, como forças interiores que nos guiam na procura da identidade do homem por detrás dos assassinatos. Apesar do livro não ser ilustrado, Pamuk fala de imagens, constrói imagens onde o tempo se suspende, à semelhança das situações retratadas nas miniaturas persas, sem abdicar de uma profundidade de motivos e traços que subjazem a ação de cada personagem, como na arte europeia. Consegue, assim, conciliar na sua escrita as tradições do oriente e do ocidente que ele próprio nos apresenta em conflito na ação de O Meu Nome é Vermelho. O Corno Dourado (estreito que separa Istambul em duas metades) surge como evidência da proximidade e permeabilidade entre estes dois mundos. A cidade de Istambul, por sua vez, é o espaço que dá coerência ao desejo do autor de situar a ação tanto no passado como no presente. Esta é a cidade dos miniaturistas, mas também a de Orhan Pamuk, que surge representado como criança no sexto capítulo “Eu sou Orhan”. Há, ainda, outra figura que pode exercer esse papel de alter-ego, o contador de estórias que atua no café, dando voz às ilustrações providenciadas pelos miniaturistas que nele se reúnem. Este pormenor poderá lembrar a figura do aedo na Odisseia, que alguns consideram ser uma representação do próprio Homero. O mundo de O Meu Nome é Vermelho, com a sua ampla geografia, corre o risco de nos surgir, à primeira vista, algo distante. Mas há que lembrar algumas referências a Portugal, o extremo desse ocidente com o qual Istambul se relaciona de duas maneiras. Em primeiro lugar, é uma das cidades que recebe parte da comunidade judaica que foge da inquisição a partir do século XVI. Em segundo, é capital do Império Otomano que, também neste século, se torna o grande rival dos portugueses, uma vez que ambos os estados têm ambições imperiais assentes no desejo de se afirmarem como embaixadores entre o mundo oriental e ocidental. O avanço do Império Otomano em direção aos estados do mundo católico deixa a Europa em alarme, reavivando o confronto entre o Islão e o mundo cristão, mas a eclosão da reforma protestante virá introduzir um novo factor no xadrez político internacional. A aliança da rainha inglesa Elizabeth I com os Otomanos surge também retratada em O Meu Nome é Vermelho, através do episódio em que os ingleses oferecem um imponente relógio ao Sultão, que acaba por destruí-lo num ataque de raiva. A incursão nesta contextualização dos acontecimentos do mundo antigo, que convivem com aspectos do mundo moderno e contemporâneo, faz do livro não só uma obra atemporal, ou de vários tempos, mas também mundial. É esse um dos seus pontos fortes e um dos factores que contribuiu para a circulação internacional do livro, receção favorável pela crítica e, por fim, pela consagração de Orhan Pamuk como escritor internacional, selada pelo prémio Nobel. A própria história evocada pelo autor, com a descrição da idade de ouro da arte persa e do legado de conhecimento transmitido através do mundo árabe, deve ser valorizada como integrante da nossa cultura. Afinal, também nós que habitamos o território do antigo Al-Andaluz, lugar de charneira do mundo islâmico, deveríamos reconhecer a herança de pensadores como Avicena, Averróis, ou Al-Farabi – cujo nome deu origem à palavra portuguesa alfarrabista – perceber que, se “Deus pertence ao este e ao oeste”, há que olhar o mundo atual partindo do legado de ambas as tradições. O passado e o futuro tocam-se, tal como a arte e a vida, eis algumas das conclusões possíveis de contemplar na obra Orhan Pamuk. Não querendo deixar spoilers do livro, fica o convite à leitura de O Meu Nome é Vermelho, a quem possa interessar. |