Mechanical vs. Digital Reproduction: uma reflexão sobre o ensaio de Boris Groys.
O original é simplesmente outro nome que se dá à presença do presente, para algo que acontece aqui e agora." - Walter Benjamin Em 2016, Boris Groys publicou o seu livro In The Flow, onde se inclui o ensaio Modernity and Contemporaneity: Mechanical vs. Digital Reproduction que é, no fundo, uma resposta do crítico e filósofo acerca do efeito do digital na forma como observamos, pensamos e fazemos arte, e quais as diferenças que introduz em relação ao método da reprodução técnica:
A nossa era contemporânea parece diferente de todas as outras épocas historicamente reconhecidas em pelo menos um aspeto: nunca a humanidade esteve tão interessada na sua própria contemporaneidade." - Boris Groys, Cap.9 - “Modernity and Contemporaneity: Mechanical vs. Digital Reproduction”, In the flow (2016) A razão de tal, na sua perspectiva, é a capacidade da nossa contemporaneidade de nos surpreender pela sua estranheza. A nossa experiência com um presente que é partilhado e a nossa possibilidade de saber tudo o que acontece no mundo a qualquer momento é o que diferencia o nosso tempo de, por exemplo, o período da modernidade, em que o presente era experienciado como um momento de transição. O interesse na nossa contemporaneidade é um sintoma do nosso fascínio pelo “aqui e agora”.
Boris Groys reconhece várias formas de distinguir estas duas épocas (moderna e contemporânea), mas opta por analisar o contraste entre dois modos de reprodução: a técnica e a digital. A partir deste ponto, existe uma relação óbvia com um outro ensaio, o de Walter Benjamin -“A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”. Para Benjamin, a possibilidade de uma reprodução perfeita não reside nas capacidades técnicas, mas sim na originalidade, na aura da obra. O original possui uma aura que a cópia jamais poderá possuir. Esta aura contida no objeto está na relação entre a obra de arte e o contexto em que ela se insere: um contexto único que possibilita à obra um lugar na história, o “aqui e agora” desse objeto. A autenticidade de uma coisa é a suma de tudo o que desde a origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico.” - Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política - “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica” (1992) tradução de Maria Luz Moita, ed. Relógio D´Água. P.79. Para percebermos a noção de “aqui e agora” utilizada por Walter Benjamin, talvez seja vantajoso pensar na relação que esta mantém com a noção heideggeriana de “Ser-no-mundo” [1] e, por intermédio desta, com o conceito de intencionalidade desenvolvido por Edmund Husserl. Uma definição simples será a de que a principal característica da consciência é ser sempre intencional. Segundo Husserl, a consciência é sempre consciência de alguma coisa, de um objeto. Ou seja, sempre que existe consciência existe um objeto. Desta forma o “aqui e agora” a que Benjamin se refere, a nosso ver, é todo o significado que nós, que somos providos de consciência, atribuímos à obra de arte.
O que destrói a aura, e consequentemente provoca a desvalorização do “aqui e agora” de um objeto, para Benjamin, é o movimento intenso e difuso das massas: 'Aproximar' as coisas espacialmente e humanamente é atualmente um desejo das massas tão apaixonado como a sua tendência para a superação do carácter único de qualquer realidade, através do registo da sua reprodução.” - Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política - “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica” (1992) tradução de Maria Luz Moita, ed. Relógio D´Água. P.81 A fotografia e o cinema vieram permitir a reprodução em série. A autenticidade dos objetos produzidos não era uma preocupação, mas sim alcançar o maior número de pessoas. E, consequentemente, com o descarte da autenticidade de uma obra de arte como essencial, a função social da arte foi repensada.
Dito isto, não será possível para um filme ou uma fotografia, independentemente de todas as cópias que surgem do seu original, conter em si uma “aura”? Hoje sabemos que a resposta para esta questão é afirmativa. A “aura” de uma obra de arte, é determinada não só pela sua autenticidade mas pelo “aqui e agora” que a nossa consciência determina. Tenha-se como exemplo a obra After Walker Evans de Sherrie Levine (fig.1) que consiste num conjunto de fotografias que a artista tirou de fotografias já existentes da autoria de Walker Evans, apresentando as mesmas sem qualquer manipulação, como suas. Essas fotografias, que são no fundo cópias, não têm uma originalidade própria? A resposta é afirmativa mais uma vez, pois ao fazê-lo, a artista que questionava o lugar da mulher na sociedade e no mundo da arte, alterou a autoria do mesmo objeto artístico, de homem para mulher. No caso da reprodução digital, não é a imagem, ou a memória virtual ou o ficheiro que são copiados através da reprodução. O ficheiro da imagem não é uma imagem, isto porque o ficheiro da imagem é invisível. Ou seja, uma pessoa X tem conhecimento da obra de Yves Klein, enquanto que uma outra pessoa Y não conhece a obra do artista de todo. A pessoa X poderá ter tido acesso à obra de Yves Klein através de uma exposição sobre o artista. E sabe que, se pesquisar na Internet o nome ‘Yves Klein’ terá novamente acesso aos ficheiros de imagens correspondentes às suas obras, enquanto a pessoa Y só poderá ter acesso a esses ficheiros se ficar a conhecer o nome Yves Klein através de uma experiência exterior e tiver curiosidade em pesquisar na internet a sua obra. Ou seja, os ficheiros referentes ao artista estão lá, mas só existem se a pessoa tiver conhecimento de tal. A matéria existe apenas quando é objeto da percepção. Todo o conhecimento surge da nossa percepção, e aquilo de que temos percepção não são coisas em si, mas sim ideias. Apenas através da experiência exterior as coisas podem existir, se não houver percepção não há objeto. Boris Groys dá-nos o exemplo da música, que tem de ser tocada para ser ouvida. E, tal como uma performance musical é sempre diferente da anterior, uma imagem ou um texto digital também o são, porque dependem dos formatos em que são apresentados. A visualização de algo digital depende sempre da interpretação de quem a visualiza, mas não se trata de interpretação do conteúdo da imagem ou do ficheiro, mas sim do formato. No caso da reprodução técnica, a obra original é perceptível e por isso podemos compará-la à cópia. Se na reprodução digital, a forma original da obra for invisível então não existe comparação possível com a cópia. Não existindo esta comparação, podemos dizer que tudo é cópia e tudo é original, de onde se segue que a distinção deixa de ser pertinente. Boris Groys concluí: “As imagens digitalizadas não existem, a menos que nós, usuários, lhes demos um certo "aqui e agora". Isto significa que cada cópia digital tem o seu próprio "aqui e agora" - uma aura de originalidade - que uma cópia mecânica não possui. Desta forma, a relação entre original e cópia foi alterada pela digitalização de forma radical” [2]. Mas a reprodução digital levanta uma outra questão: a do juízo de gosto. Nas últimas décadas, a Internet tornou-se o local principal para a produção e distribuição de práticas artísticas, escrita e ainda de arquivos culturais. Para nós, que a utilizamos para esta produção e distribuição, a Internet é algo libertador, dado que é menos seletiva do que um museu, uma galeria ou uma editora. Mas em quem depositamos o critério de seleção? Ao que Boris Groys responde: “Obras de arte são escolhidas porque são escolhidas”[3]. A Internet veio permitir algo que já os artistas do avant-garde procuravam, uma desficcionalização da obra de arte. A ideia do “urinol” está agora refletida em forma de documentação digital, como um processo de trabalho das obras de arte no mundo real, fora da Internet. Os próprios museus e galerias de arte já incluem esta documentação ao lado de obras de arte tradicionais: O museu contemporâneo é basicamente um palco para a organização de projetos curatoriais, instalações artísticas ou acontecimentos artísticos temporários. Como tal, é importante porque informa as pessoas daquilo que se passa na arte contemporânea.” - Revista Electra, entrevista por António Guerreiro a Boris Groys, Março, 2018. A diferença entre este tipo de exposição e uma exposição tradicional é a importância do espaço. Na exposição tradicional, o espaço é neutro e o foco é apenas direcionado para as obras. Deste modo, as obras são tratadas, não como algo temporário, mas sim como algo eterno.
O museu e este tipo de documentação formam-se a partir de seleções daquilo que é ou não relevante artística e historicamente. A Internet, por outro lado, “é um enorme caixote do lixo” [4], em que podemos remexer, procurar e encontrar coisas que nos interessam e outras que são completamente irrelevantes para nós. -
[1] - Ao apresentar o conceito "ser" como inseparável do objeto "mundo”, Heidegger introduziu o termo “Dasein” (literalmente “estar lá”), com a intenção de incorporar um ''ser vivo'' por meio da sua atividade de ''estar lá ' e “estar no mundo”. [2] - Groys, Boris, Cap.9 - “Modernity and Contemporaneity: Mechanical vs. Digital Reproduction”, In the flow (2016). [3] - Groys, Boris; In the flow , Cap.12, Art on the Internet; (2016). [4] - Idem. - Um texto de Inês Apolinário. 13-02-2021 |