Memória: O Meio que Conserta o Tempo
Realizado por Miguel Gomes e filmado a preto e branco num formato estreito, quase quadrado, Tabu chega-nos como preservação da memória através de um fio diegético fragmentado em duas partes alusivas ao passado e ao presente. Nele, coabitam duas recordações: a do próprio cinema enquanto fundação cultural sobretudo no que concerne à época do mudo, bem como ao clássico de Hollywood, e um acontecimento sociopolítico da história portuguesa. A primeira parte, Paraíso Perdido, apresenta-nos numa espécie de preâmbulo, um explorador português do século XIX a ingressar no continente africano acompanhado por uma sonoridade de piano, e uma voice-over. O explorador, movido pela mágoa que o habita desde o falecimento da amada, descobre o fim nas águas ocupadas por um crocodilo que o devora. Filme inserido no filme, uma vez que descobrimos que se trata de um visionamento a que Pilar, personagem central da primeira parte, assiste, constitui-se como preparação para o que sucederá, ou melhor, para o que aconteceu. Por conseguinte, a cena acima referida ambiciona ser verosímil, ao mesmo tempo que revela o aparelho cinematográfico. A temática romântica principiada por este amor funesto surge de novo quando Aurora narra o seu sonho a Pilar, acerca de uma esposa infiel e um homem felpudo semelhante a um macaco. O devaneio aparentemente incongruente tem raízes no amor vivido durante a juventude. Desta maneira, impõe-se a questão: Tabu insinuará que o amor existe somente dentro do sonho e da ficção? Numa realidade apática e sem fulgor, o presente é pautado pelo vazio existencial e pela nostalgia, tendo como mote a solidão e a velhice. Aqui, encontramos três personagens que corporalizam diferentes domínios: Pilar, devota não só a Deus mas também aos demais que tenta, muitas vezes sem sucesso, ajudar, Aurora, a encarnação da senilidade e do próprio tabu e Santa, auxiliar doméstica de Aurora, representa-se não apenas a si mas a um grupo, compondo-se como uma personagem tipo. O tempo diegético corresponde aos últimos dias de dezembro, que adicionados à decadência de Aurora e ao abandono de Pilar pela jovem polaca, servem como meio para enfatizar a solidão. Paraíso Perdido decorre em movimentos vagarosos com diálogos intimistas. Ainda na primeira parte, quando Pilar vai ao cinema na companhia do amigo e pretendente pintor, chora ao som da canção Be My Baby, que possivelmente remete a personagem para o seu passado e para a crença nos sonhos românticos. Esta perspetiva ganha profundidade quando entramos na segunda parte, Paraíso, onde a jovem Aurora e o seu amante Gian Luca choram ao som da mesma em cenários distintos. Paraíso, é-nos introduzido com as palavras do agora idoso, Gian Luca: “Ela tinha uma fazenda no sopé do monte Tabu”, começa por dizer. Ou seja, somos inseridos nele através da memória. Nesta parte, a banda sonora intercala-se com os ruídos diegéticos e a voice-over do narrador, sendo a parte que visita o cinema mudo, uma vez que os diálogos não são audíveis. Por consequência, é a própria memória do princípio da Sétima Arte que se ergue e, embora em primeiro plano narrativo tenhamos uma história de amor secreta, ao estilo dos clássicos de Hollywood, é similarmente mostrado em segundo plano, a reminiscência de uma geração portuguesa impulsionada pela promessa de um amanhã auspicioso. Paraíso, na sua essência, surge como memória reconstruída e a privação dos diálogos afigura-se como signo reconstrutor destas mesmas imagens. Ainda que o guarda-roupa das personagens e as alusões musicais remetam à década de 60, o hino ao cinema mudo avigora o papel das demais memórias. Paraíso é pautado pelo exotismo, pelo onírico, bem como pelas aventuras constantes, contrariamente ao realismo sem alma do primeiro capítulo. Todavia, o título encerra uma ironia, pois no cerne do dito “paraíso” povoa a hegemonia, a vassalagem e a traição, como se o paraíso fosse somente acessível a alguns. A este propósito, a palavra (paraíso) assoma sobre as domésticas que varrem a casa e não sobre Aurora que corre livremente. Aurora que convive com pessoas praticantes de magia, metamorfoseia-se no tabu indesejado. O romance entre os dois (Aurora e Gian Luca) é principiado quando um crocodilo bebé, oferecido pelo marido de Aurora, se imiscui na casa de Gian Luca. O amor das personagens é simbolizado pela vida selvagem onde os instintos imperam. Esta conotação é visível na cena em que se envolvem com a barriga proeminente entre eles. Mais tarde, Mário, amigo boémio de Gian Luca, captura-os enquanto estão a monte. Envolvidos numa altercação física, Aurora dispara para proteger Gian e a si mesma, assassinando Mário. Em seguida, Aurora entra em trabalho de parto e Gian Luca sente remorsos, assombrado pela visão incomportável do rosto morto do amigo, e da amada com a filha de outro homem nos braços. Seguidamente, mantêm contacto por recurso de cartas acabrunhadas até se cessarem por completo. Ambos seguem a vida separadamente carregando a cruz dos delitos cometidos, sendo um deles a inconsciência perante a guerra que estava iminente, contudo os olhos ficam hipnotizados quando amam. Uma outra figura de relevo na trama é o crocodilo, metáfora da memória que assiste em primeira fila às paixões e aos infortúnios humanos, encerrando do mesmo jeito o tempo. Na última deixa, ou melhor dizendo, na última carta de Aurora, existe uma passagem que profere: “Se a memória dos homens é limitada, já a do mundo é eterna e a ela ninguém pode escapar” e o último plano do filme é, precisamente, a do crocodilo; o ser guardador de desejos e recordações. Tabu, é em si, uma obra cinematográfica que coloca várias questões sobre a existência humana, tal como a convivência entre indivíduos de cores diferentes, uma problemática que se expande ao longo de toda a segunda parte. Esta relação é ainda mais notória em Paraíso onde um grupo de amigos brancos se divertem, coexistindo com os negros, mas nunca se misturam. O distanciamento, embora vivam lado a lado, é evidente na cena em que uma criança negra estabiliza um burro enquanto Aurora desenha. O desenho apenas esboça o rosto do animal sendo o miúdo invisível aos seus olhos. Os planos do filme, sem projetarem um olhar julgador sobre os companheiros brancos, demonstram que aparentam ser pessoas socialmente e politicamente alienadas. A banda à qual pertencem também espelha o desfasamento entre eles e a terra onde residem. As músicas Baby I Love You ou Lonely Wine esclarecem claramente que a musicalidade da vida destas personagens nada possui de africano. Mostra, deste modo, que a representação que situa o colono português em plena consonância com os povos colonizados, se encontra distante da realidade. No entanto, através da junção entre imagem e texto, o cineasta frisa todo o panorama sociopolítico, visto que enquanto escutamos as cartas trocadas entre os amantes perto do desfecho do filme visionamos os negros a trabalhar. Quando ouvimos pela voz envelhecida de Gian Luca: “Nunca pensei porém, que no meio de tantas vilezas, o meu maior crime seria o de me apaixonar”, temos em plano os negros a trabalhar nos campos. As personagens negras surgem sempre em grupo, jamais individualizadas, constituintes da paisagem como as árvores e, por este motivo, afirmámos previamente que Santa é a representação (a memória) dos antepassados. Aqui, na fusão entre texto e imagem, duas espécies de infelicidades são igualizadas: a primeira é a amargura emocional resultado de uma vida indolente trespassada pela libertinagem e pela falsa moral, enquanto que a segunda é provocada pela exploração, sujeitos passivos ao espaço que os rodeia. Próximo do final há uma cena em que um grupo de crianças corre em direção à câmara, remetendo possivelmente, para a esperança no futuro dos países que procuram a sua liberdade. A partir desta cena só pessoas negras são vislumbradas e, pela primeira vez, nas aldeias com tarefas próprias da sua cultura. Em suma, o filme sugere dois fins, sendo um positivo e outro negativo. Temos, por um lado, a expetativa para os subjugados com a promessa de um futuro emancipado e, por outro, o ceticismo no amor sincero e perpétuo. O tempo constitui-se como marca identitária na obra fílmica Tabu. Encontram-se três tempos que o compõem: o tempo presente, o tempo passado, e o tempo ainda mais longínquo. A cada um pertence um espaço singular, uma vez que ao presente corresponde a Lisboa contemporânea, ao passado a África aportuguesada, e ao longínquo a livre selva africana, o prólogo. O preto e branco salienta a nostalgia e a melancolia, mote da obra cinematográfica que declara o caráter memorialista, como de fotografias se tratassem. A Lisboa dos dias de hoje ainda padece dos “pecados” perpetrados em terras dominadas pela supremacia do branco, o suposto “civilizado”. Tabu deixa-nos uma questão a ecoar em nós: visionamos o paraíso perdido do quê e de quem? Da mesma forma que nos delega uma sugestão: na inversão da temporalidade germina o alerta de que as ações do passado ressoam no futuro. |