'Midsommar' de Ari Aster: Analogia com os cultos pagãos, na Suécia, entre a Idade Média e o mundo contemporâneo – O terror vem do Norte.
A filmografia concede acesso a mundos distantes, e, por vezes, imaginários e desconhecidos. O cinema de terror tem vindo a evoluir numa trajetória paralela à pop culture, traçando contos e mitos perdidos no curso da história, e que levantam temáticas interessantes, para as quais o público não está consciente. Midsommar é um desses filmes, onde o folclore medieval nórdico é explorado na sua essência mais crua, e são levantadas morais transponíveis para o mundo contemporâneo. O conhecimento que se detém sobre estas culturas encontra-se num núcleo demasiado reservado, quer seja ao nível dos connaisseurs, ou das fontes historiográficas, que, na maior parte dos casos, se reduz a sagas, cuja linearidade histórica é incerta, ou a mitos que remanescem em manuscritos tardios, e após séculos de tradição oral. O cinema, acaba por ser uma fonte, que para além de contemporânea, nos permite analisar estas culturas com outro olhar, e acessibilidade. Do século XVI em diante, iniciaram-se estudos e compilações sobre a «Idade das Trevas», fazendo transcrições, e interpretações de cultos provenientes de mundos sobre os quais pouco ou nada se sabia, principalmente, naquele período em específico. Através de uma fonte iconográfica e artística do século XXI, é possível realizar uma analogia que percorre todo o estudo comparativo entre os cultos pagãos medievais, na Suécia, e o que o filme nos apresenta, mas também, fazer um levantamento literário e imagético, e colocar estes três polos em correlação. Recorri a estudos específicos sobre o paganismo e folclore medieval, querendo destacar, no mundo académico e investigativo, Owen Davies [1], Raoul Manseli [2], Don Yoder, o índex ATU de Antii Aarne, Stith Thompson e Hans-Jorg Uther [3], Alois Riegl [4], inicialmente através da obra de Helmuth Bossert [5], e no plano artístico, John Bauer, artista que acompanha o curso do filme, e que contribuiu para a iconografia folclórica escandinava. A cultura pagã medieval – origens, desenvolvimento, práticas e remanescências Paganus é um termo que originalmente encontramos associado às civilizações clássicas, muitas vezes de forma depreciativa – a partir da ótica cristã – em virtude da sua religião politeísta. Durante a Idade Média, paganismo, para lá de um conceito, era uma heresia, pois era aplicado a qualquer religião que não fosse familiar, e, subsequentemente, à crença em falsos deuses. O conhecimento que atualmente existe acerca das religiões pagãs, provem de estudos antropológicos, artefactos arqueológicos e da literatura. A geografia religiosa europeia, durante a época medieval, era extremamente complexa, estando em constante mutação. Era composta por pequenos mosaicos correspondentes a cultos locais, nacionais e, até, internacionais, onde os monoteístas, henoteístas e politeístas viviam e adoravam os seus deuses, com uma proximidade entre eles, algo reduzida. Este novo mundo, o medieval, teve capacidade de comprimir em si áreas do norte da Europa, que nunca fizeram parte do Império Romano, como por exemplo a Escandinávia. Mesmo em pleno período tardo-medieval, a resistência à conversão cristã, persistia, e o ano de 1484 foi marcado pela influência da prática de bruxaria, na Europa. Foi neste mesmo ano, que o Papa Inocente VIII promulgou a Bula Papal, de seu nome Summis desiderantes, cujo texto ficou marcado para a posterioridade depois de ter sido incorporado no prefácio de um livro de caça às bruxas: Malleus maleficarum [6]. Houve múltiplas interpretações ao texto papal, mas sem dúvida, a perspetiva ligada à bruxaria e das atividades diabólicas que tinham lugar no norte da Europa, foi a mais interessante e cativante. O processo de cristianização em massa, compôs, em grande parte, esta distribuição, ainda que os locais de resistência tenham persistido em praticar cultos muito próprios, moldes diretos das suas tradições. Fora dos centros urbanos, continuavam a assumir a veneração e adoração politeísta, focando-se nas oferendas às divindades locais nas florestas, de forma a assegurar a fertilidade dos animais e da terra e a proteção das comunidades locais. Os bispos cristãos tentaram eliminar estas práticas apelando aos senhores feudais, de forma a que estes tomassem medidas junto dos seus camponeses. Raoul Manselli diz-nos que a religião popular era uma versão simplificada e difundida do cristianismo oficial, dirigida, especificamente, para as massas. Os cultos, eram, por outro lado, remanescências das vivências pagãs, simples tradições populares associadas ao folclore local – festividades, magia e histórias – sem que tivessem relevância religiosa. Folclore medieval: da heresia ao very typical. O termo folk é normalmente analisado de duas perspetivas: a cultura folclórica e os aspetos folclóricos inerentes a uma religião; e os sincretismos entre culturas, que juntas, criam uma tradição folclórica própria. O folclore medieval era, originalmente, transmitido através de tradição oral a qual foi sendo constituída, na sua essência, entre os séculos V e XV. O termo folclore foi introduzido, em 1846, pelo escritor britânico William John Thoms para substituir o termo «popular antiquities», referente a histórias, fábulas, provérbios e lendas. A tradição oral permitia que as histórias fossem mais dinâmicas, e com o passar de geração em geração, fossem ganhando corpo, cujos principais agentes de transmissão eram os mercantes, incorporando-as em diversas culturas. Fruto de uma cultura organizada à volta de práticas espirituais, a vida útil dos objetos, que hoje consideramos arte, era curta. A arte folclórica era predominantemente funcional e utilitária, feita de forma artesanal, enquanto expressão direta da criatividade humana. É uma arte feita pelo povo e para o povo, cujo reconhecimento, como categoria especial, ganhou corpo nos finais do século XIX, sendo designada como arte da terra. Paganismo escandinavo: Suécia como caso de estudo
A Suécia, resultante da fusão dos reinos de Gotaland e Svealand entre os séculos XI e XII, foi, juntamente com os reinos da Dinamarca e Noruega, alvo do processo de cristianização entre os séculos VIII e XII, onde se estabeleceram arquidioceses, sob o jugo direto do Papa nos anos 1104, 1154 e 1164. De acordo com M. G. Larsson [7], as províncias suecas coexistiam entre as práticas pagãs e cristãs, principalmente durante o século XI, e demonstravam uma vontade sincera em transitar para uma nova religião. No entanto, os antigos ritos eram importantes e centrais, e quando eram questionados fazia com que muitos convertidos pudessem reagir bastante mal. Larsson considera, ainda, que as vacilações entre ambos os cultos são algo semelhantes às que ocorrem atualmente. Os processos de construção de uma religião, e dos cultos a ela associados demoram séculos a atingir uma plenitude, mas numa uma perfeita completude. Isto, porque permanecem em constante mutação, e adaptação, aos tempos, e aos cultos que incorporam. O caso de estudo permite-nos refletir sobre a forma como uma religião, ainda no processo de organização, e de expansão, incorporou em si áreas cujos cultos eram tão distintos. Todavia, essa incorporação não foi total, e aspetos do passado remanesceram. Assim, o capítulo que se segue irá abrir uma discussão sobre o filme «Midsommar», e de que forma é possível estabelecer uma analogia com a temática supracitada. Midsommar de Ari Aster: o medo do desconhecido - Analogia: análise do filme e comparação com os diferentes aspetos do folclore medieval sueco. Após o esmagador sucesso de 2018, «Hereditário», Ari Aster (n. 1986-), voltou a surpreender com a sua segunda longa metragem, objeto central neste estudo. Desde cedo, o nova-iorquino sempre se sentiu atraído pelo terror, iniciando uma jornada no mundo do folclore, realizando pesquisas exaustivas acerca de diferentes culturas e mitos folk. O filme em estudo permite criar imediatas analogias imagéticas mentais com obras como «The Wickerman» (1973), «Cries and Whispers» (1972) e «The Sacrifice» (1984), filmes britânico e suecos, respetivamente. O filme apresenta-nos um culto denominado de Harga, cujo nome corresponde a uma localização na Suécia, e o grupo de estrangeiros interpretados por Florence Pugh (Dani), Jack Reynoir (Christian), Will Pouter e William Jackson Harper, são recebidos por um grupo pessoas, que os coloca, pelas evidencias fisionómicas e comportamentais, como outsiders – tal como espectador. Este mundo, meticulosamente desenhado, arquitetonicamente contruído é já considerado um trademark de Aster, onde o estilo de vida representado segue determinados preceitos, num cenário onde somos presenteados, quase na totalidade do tempo, pela luz do dia, e por um sol intenso. Este culto, acaba por ser uma compilação feita por Aster, através das festividades, tradições, mitos, músicas e danças correspondentes ao folclore sueco. As celebrações do solstício, na Suécia, tinham como objetivo receber o verão, e permanecem como algo bastante presente nas sociedades atuais. Todavia, Po Tidholm, jornalista sueco, está longe de corroborar certos ritos presentes no filme, afirmando que tal nunca havia acontecido, como por exemplo os suicídios – Attestupa. Este ritual, consistia na oferta da vida dos mais velhos, a Odin, através do suicídio – em Midsommar, esse suicídio é feito de uma altíssima rocha – , cuja referência surge na saga dos Gautreks, nos finais do século XIII, sobrevivente em manuscritos bem mais tardios. Outros dos aspetos desacreditados por Tidholm, tem que ver com o feitiço de Maja (Isabelle Grill) sobre Christian, o qual consistia na inserção de pêlos púbicos numa tarte que seria destinada ao indivíduo a ser enfeitiçado, e existem evidencias disso mesmo como fazendo parte de uma tradição medieval: «(…) “If you want Simon the son of Fra Silvestro, whom you love, to love you and not to be able to love another woman, and to marry you, you have to do the following incantations and spells: feed him some of your menstrual blood, by putting it in a pie (pastrino); take some of you pubic hair, burn it, grind it to a powder, and put it in his food.”» [8]. O culminar do festival acontece aquando da coroação da May Queen, ritual de origem germânica. Para tal, as mulheres mais jovens teriam de dançar e cantar à volta do maypole (mastro) e a última a ficar de pé seria coroada Rainha da Primavera. Depois de coroada May Queen, a sua imagem transforma-se num símbolo de fertilidade, celebração da vida, amor, procriação e renovação. Sir Thomas Malory referiu-se ao poder da primavera nos trajes na corte do Rei Artur em The Death of King Arthur: «It was the month of May, the month when the foliage of herbs and trees is most freshly green when buds ripened and blossoms appear in their fragrance and loveliness. And the month when the lovers, subject to the same force which reawakens the plants, feels their hearts open again, recall past tryst and past vows, and moments of tenderness, and yearn for a renewal of the magical awareness which is love». Outro dos aspetos a destacar, e que está envolto na maior importância, é a presença das runas. O alfabeto rúnico impregna Harga, e afigura-se estranho ao olhar de muitos, principalmente dos viajantes. Aster, aprendeu o processo de escrita rúnica, e a que se verifica presente no filme, é para ser lida segundo os preceitos de Uthark e Futhark. A arte folclórica presente no filme surge de imediato no tableu de abertura e nos dormitórios, na forma de pintura parietal. Junto a Helsínquia, há sete quintas que constituem património da UNESCO, pelas suas paredes profusamente pintadas, datadas dos séculos XVIII e XIX. E, indo de encontro às peças utilitárias supracitadas, sabe-se que já no século XIII se fazia tapeçaria, da qual já não há muitos exemplos remanescentes, mas que se continuou a produzir, existindo ainda alguns exemplos datados do século XIX. A cultura pagã e o folclore medieval sueco, e escandinavo, em geral, são polos temáticos que ainda estão bastante distantes de se verem estudados com mais profundidade, e apesar das semelhanças com o restante mundo nórdico, a Suécia, guarda em si particularidades muito interessantes, que merecem ser analisadas. Este estudo focou-se na compreensão disso mesmo, através do levantamento de fontes, e o descortinar de uma cultura, que, neste período em específico, aparenta ser distante. Midsommar é um excelente objeto de estudo, sendo que do ponto de vista histórico cumpre a sua função didática e ilustrativa daquilo que pretende representar. Através do estudo realizado, foi necessário olhar para diferentes mosaicos que preenchem uma cultura, e tentar encontrar os seus correspondentes na obra fílmica, e permitiu-me fazer uma compreensão crítica da bibliografia e fontes existentes, verificando que para além das disparidades e contrariedades, há perspectivas erróneas e datadas. Isso, é prova viva da necessidade de dar continuidade a este tipo de estudos, através de fontes atuais, tais como filmes ou projetos multimédia, e adicionar-lhes um cunho crítico que vá para além da âncora da realização ou do cast. Há, de facto uma lacuna analítica em relação à filmografia, no que toca à perspetiva histórica, e cuja faceta merece estudos aprofundados, e que tragam com eles novidades e novas óticas sobre o assunto. Em Portugal, o mundo medieval nórdico, e os seus aspetos culturais e folclóricos vivem perante uma lacuna de estudiosos, e de estudos feitos a seu favor. Assim, pretendo com este estudo reforçar a importância em alargar as fronteiras de trabalho da História da Arte, olhando para novos campos, que não os tradicionais, e não ter de incorrer em monografias, com a possibilidade de realizar trabalhos mais dinâmicos. [1] - Owen, DAVIES, Paganism: A Very Short Introduction, Nova Iorque, Oxford University Press, 2011, pp. 52-61. [2] - Raoul, MANSELLI, Il Secolo XII: Religione popolare ed eresia, Jouvence, ed. 2002. [3] - Vide em https://libraryguides.missouri.edu/c.php?g=651166. [4] - Alois, RIEGL, Die Stimmung als Inhalt der modernen Kunst, versão digitalizada (http://digi.ub.uni-heidelberg.de/diglit/gk1899/0058), 1899 (data da publicação original). [5] - Helmuth Th., BOSSERT, Folk Art of Europe, A. Zwemmer Ltd., Londres, 1954. [6] - Cf. Stephen, MITCHELL, Odin, Magic and Swedish Trial from 1485, Harvard University, 2009. [7] - Thomas, MAGNUSSON, Peter A., SJÖGREN, “Ansgar”, in Vad varje svensk bör veta, Albert Bonniers Förlag e Publisher Produktion AB, Estocolmo, 2004. [8] - Trevor, DEAN, «Potions and poisons», in Crime and Justice in Late Medieval Italy, Cambrige University Press, 2010, Capítulo VI, p. 155. - Um texto de Laura Carvalho Torres. 14-01-2021 |