O 'Gambito da Rainha' (2020) e a questão da visibilidade do feminino.
É indiscutível o fenómeno que a minissérie da Netflix "The Queen’s Gambit" (2020) tem causado nos últimos tempos. Graças a ela recuperámos o trabalho de vários artistas ao produzirem diversos sets de xadrez com um valor artístico inquestionável; muita gente se interessou ou simplesmente seguiu de perto um pouco do mundo deste jogo. No entanto a série chamou também atenção para a posição do género feminino em determinados espaços da sociedade, nos quais ela é ofuscada uma vez que o ambiente é dominantemente masculino. Beth Harmon afirma-se não só no tabuleiro, mas também na estética que é atribuída à personagem, seja pela moda que transmite uma metamorfose até ao fim da série, mas também porque através da sua arte quebra barreiras e permite ao público ter como modelo uma protagonista brilhante. Ao ver a série, foram marcantes para mim algumas questões que depois levei para fora desta, promovendo uma investigação própria para tentar encontrar uma resposta plausível. É certo que o mundo do xadrez que nós conhecemos aliava-se dominantemente a um panorama, que conforme referimos, é masculino, de figuras geralmente vestidas de um modo genericamente estandardizado. Ter no grande ecrã figuras como Beth Harmon que quebram as barreiras enraizadas na nossa conjuntura, é para nós de louvar pela abordagem e, por mostrarem ao público mais generalista, que o género feminino tem igualmente boas jogadoras que merecem de nós atenção. Ao pesquisar, encontrei diversas figuras a denunciarem o panorama excessivamente masculino, e a urgência de dar lugar a jogadoras, que lentamente começam a ter visibilidade. Ironicamente, ou não, o xadrez tem tido uma elevada expressão no mundo da arte desde muito cedo. Recordando as imagens do jogador que joga com a morte nas representações datadas do período medieval, bem como as várias obras que pontuam a história da arte até aos nossos dias. Tratava-se de um jogo, que conjuntamente com outros como o gamão; os jogos de cartas; entre outros, que para além de ter uma panóplia de objetos esteticamente trabalhados a eles associados, preenchiam a vida social das várias camadas sociais ao longo dos anos. Reunimos algumas nas quais, contrariamente à realidade atual, o género feminino obtém um papel principal e, em boa verdade, apesar dos exemplos que temos para referir serem dominantemente datados dos séculos XIX e XX, o género feminino é também participante desta tipologia de obra, pelo menos desde o período medieval. Também nestas obras, há semelhança com o caso de Beth Harmon, a moda e a postura têm um papel fundamental. Não só pelo facto de os exemplos serem sobretudo de situações que se sucedem nos momentos da vida social das altas camadas da sociedade, mas também, porque demonstram um gosto próprio das intervenientes nas cenas. Tal como nos campeonatos disputados por Beth, também os jogos realizados por estas, poderiam ter público, tratando-se de um momento de exibição das suas capacidades intelectuais. Na série, a moda é utilizada para ilustrar a longa evolução psicológica da personagem principal, é a roupa por ela usada que dita o modo mais confiante como Beth Harmon se apresenta ao público e sobretudo aos seus adversários. A série denuncia um problema que se tem vindo a tentar combater, contudo tal como noutras áreas, os estereótipos continuam a ter um grande peso, o que motiva uma menor visibilidade do género feminino no circuito dos grandes mestres, no qual Beth Harmon compete na série. Não se pense, apesar desta realidade, que o género feminino não apresenta também fortes personalidades. A associação do género feminino ao jogo, para além de ilustrar uma situação comum da vida quotidiana das comunidades, pode também tomar contornos especiais como se sucede n’O Jogo de Xadrez' pintado por Sofonisba Anguissola (1532-1625) em cerca de 1555. Nele a pintora retrata as suas filhas enquanto a ama olha atentamente para o desenlace do jogo. Trata-se de um conjunto de mulheres que executam uma atividade intelectual – um jogo que se define como uma arte de guerra, assunto que para o século XVI era um tema para o género masculino. Para além de um retrato da família de Sofonisba, esta obra alerta-nos não só para as questões debatidas no século XVI, mas que ainda hoje permanecem atuais. Como Beth Harmon, também Lucia direciona o seu olhar para nós enquanto se prepara para fazer cheque mate ao rei com a mais poderosa peça do jogo – a rainha. Enquanto peça artística, a série apresenta-nos diversos planos do rosto da personagem principal, os seus olhares valem muito, uma vez que também eles são espelho da personalidade de Beth e ajudam-nos a criar empatia com a situação retratada. A realidade que vivemos hoje assenta num passado que se plasma na obra de arte. Ela permite-nos nesta situação questionar a visão historicista tida durante muito tempo, em como as mulheres não deviam jogar xadrez (século XVI), pois estas poderiam corromper a pureza do jogo ao comprometer a racionalidade deste, aspeto que estava ligado ao género masculino. No entanto, este ponto de vista prevaleceu durante muito tempo, o que depois é questionado por obras nas quais as mulheres jogam com pessoas tão importantes como cardeais. O jogo que Beth Harmon joga no grande ecrã, assim como o que nomes tão importantes como Judit Pólgar (1976), mas também toda uma nova geração coloca em evidência que devemos seguir de perto também os seus jogos, do mesmo modo que ao longo dos séculos muitos outros seguiram os jogos de xadrez sem olhar a questões de género. |