"O Sangue" de Pedro Costa: a importância do começo.
crítica.
Por Diana Sommer. 04-01-2021 Ainda muito experimental e sem preocupações de receita comercial, O Sangue foi a primeira longa-metragem realizada por Pedro Costa, um dos realizadores que mais se destaca no panorama do Cinema Português. Marcado pela sua aprendizagem na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, Pedro Costa caracteriza O Sangue como “uma espécie de prefácio, um filme muito protegido pelo cinema”. Produzido no ano de 1989, numa opção estilística pelo preto e branco e grande valorização plástica das sombras, o filme estreou no ano seguinte, relembrando obras como Stars in My Crown de Jacques Tourneur, La nuit du carrefour de Jean Renoir, bem como The Night of the Hunter de Charles Laughton, referências para o Cinema: “É o mais tradicional no sentido de que recorria ao cinema para tudo” (P. COSTA, 2009). Este drama acompanha a vida de dois irmãos, Vicente e Nino, deixados pelo pai, que estava em dívida por tratamentos para a sua saúde debilitada, sobre a qual não queria que muito se soubesse. A eventual morte do pai, escondida de Nino, é uma esperança de independência para ambos os irmãos que acabam por ser separados: “as crianças e adolescentes estão entregues a si próprios e aos seus divertimentos e fantasias.” (CRUCHINHO, 2010, p. 36). Passemos então para a análise crítica da primeira cena do filme, na qual participam dois personagens, Vicente e o seu pai, interpretados por Pedro Hestnes e Henrique Canto e Castro, respetivamente. Apesar de surgir como uma cena isolada, este plano inicial servirá como referência ao longo de vários diálogos tidos pelos dois irmãos e entre Vicente e Clara, interpretada por Inês de Medeiros. Será então desenvolvida uma teoria sobre o encaixe do plano no quadro geral do filme. Nesta longa-metragem, elogiada pela “sua singularidade e frescura” [1], somos apresentados à primeira cena, através do som de pegadas num solo lamacento, num ambiente que remete para o pico da madrugada. O plano foca-se no rosto de Vicente, que está de frente ao pai e leva uma bofetada e “não esboça um gesto de defesa ou de fuga” (J. COSTA, 2009). Depois de um breve instante de silêncio, segue-se o diálogo:
O pai de Vicente e Nino pega na sua mala e caminha na mesma direção do filho mais velho, que entra no seu triciclo motorizado, e assim se encerra o plano. A bofetada que o pai dá ao filho funciona nesta cena como um despertar, desencadeador, que ativa o enredo para o qual as crianças acordam na cena seguinte.
O enquadramento da cena é feito através de planos-retrato, destacando os rostos de ambos os personagens. “A câmara de Pedro Costa, sempre parada, filma ininterruptamente todos os gestos e sons que circundam o plano: os planos-retrato, reiteradamente filmados para cada personagem, invadem a interioridade daqueles seres, no seu silêncio opaco, dizem tudo o que vai naquelas almas de que os olhos são a montra.” (CRUCHINHO, 2010, p. 34). Embora os planos-retrato de Vicente sejam filmados com grande claridade e uma ausência parcial de sombras e contrastes (Fig. 1), onde impera a luz natural, os planos seguintes, do rosto do seu pai, são representados de modo sombrio, mesmo quando a figura não está em contraluz. Contudo, os contrastes entre ambos os planos-retrato não quebram a fluidez da cena: “assim, entradas e saídas de plano, prolongamento da duração do plano para lá do significante, direcção dos olhares e fontes luminosas constituem matéria cinematográfica dinâmica; quer dizer, não é indiferente que dois planos se juntem ou se separem - eles casam-se ou divorciam-se por semelhança ou oposição.” (CRUCHINHO, 2010, p. 34). Este modo de representação remete-nos para o psíquico das personagens: Vicente vê este momento com clareza, impondo-se, enquanto o seu pai demonstra uma certa hesitação, assombrado pelos seus pensamentos e decisão de abandonar os filhos, que acaba por não ter efeito até ao seu falecimento. Pouco depois do suposto abandono do pai, observamos Nino que se encontra entre a consciência e o sonho, dando de seguida lugar ao genérico. Regressamos então a uma cena familiar, passada na residência de Vicente e Nino, como se o plano de abertura não tivesse acontecido. Somos, mais tarde, apresentados à personagem de Clara, que terá um papel fundamental no desenrolar do filme, educadora de infância e companheira dos dois irmãos. Um plano tão curto, que poderia passar despercebido, parece ser, na verdade, fundamental para o entendimento da longa-metragem. Este é um momento-chave para a compreensão de vários diálogos e cenas que se desenrolam ao longo d'O Sangue. Deste modo, poderemos pensar a cena inicial como um momento imaginado por Vicente para explicar ao irmão mais novo a ausência do pai, embora omita que o mesmo morreu, como o pai pede que transmita na cena de abertura. Poderemos também imaginar o plano inicial como um pesadelo que Nino teria tido durante a madrugada que marca o primeiro dia da ação.
Relembrando uma das cenas seguintes, na qual estão presentes os três membros da família, surge uma certa incerteza sobre a posição do plano anterior no quadro de O Sangue. Terão estas cenas acontecido sequencialmente? Onde se enquadra a abertura da longa-metragem na sequência de planos se estes forem pensados cronologicamente? “Ora, se o cinema de Pedro Costa não precisa de demonstrar nada porque nada existe para ser demonstrado, a ordem da sua organização é regida pelo princípio da enumeração” (CRUCHINHO, 2010, p. 34). Tendo em conta a afirmação do autor e o seu supracitado princípio da enumeração na obra de Pedro Costa, destaca-se de O Sangue, com uma narrativa relativamente linear, o plano inicial que aparenta ser isolado das restantes cenas do filme.
Existem diversas possibilidades de interpretação do plano em questão. Numa interpretação pessoal, a cena de abertura funciona como um prefácio para a longa-metragem, expondo a problemática principal do filme, o abandono de dois filhos e a separação de uma família. Por um lado, deparamo-nos com a personagem de Vicente, cuja maior preocupação perante a partida do pai é a reação do irmão mais novo, e por outro, o pai de ambas as personagens pretende salvaguardar os filhos da sua morte e do luto e angústia que os esperava. O silêncio de Vicente simboliza a aceitação do inevitável futuro de ambos os irmãos, que serão deixados sós. Pouco sabemos sobre o pai de Nino e Vicente (Fig. 2) — apenas o grau de parentesco lhe é associado, nunca nos é informado o seu nome. Sabe-se, no entanto, que estava em dívida pelos seus tratamentos, não obtendo um resultado desejado:
Apressando-se até à farmácia em busca de medicação para o pai, Vicente corta-se na mão e regressa a casa com uma ferida e sem pai, cujo cadáver é escondido em segredo com a ajuda de Clara, que socorre Vicente. Após a morte desta figura paternal, os dois irmãos exploram a sua independência, combinando roupas para serem mais parecidos, aproveitando para explorar a sua recém-nascida liberdade, que não perdurará. Enquanto Vicente é atormentado pelo seu segredo, Clara tenta reconfortá-lo:
De certa forma, o plano de abertura prevê a trágica morte do pai de Nino e Vicente. O sucinto diálogo trocado entre as duas personagens dita o destino das três figuras: o pai falece, tal como pede ao filho que informe Nino, que por sua vez não obtém uma resposta concreta sobre o que se sucedeu com o seu pai; e Vicente caminha sozinho, assumindo um papel parental para Nino, que lhe será retirado pelo tio.
Apesar de parecer isolada, a cena inicial representa simbolicamente o percurso dos três familiares. No panorama de O Sangue, este momento-chave pode ser traduzido em diversas possibilidades, tanto num sonho de Nino, como uma instância imaginada por Vicente, de modo a consolar subconscientemente os dois irmãos, que se unem perante o falecimento do pai. "Morremos tanto pelo sangue que herdamos como pelo sangue que fizermos jorrar.”
- João Bénard da Costa, O Sangue, Pedro Costa, 1989, 2009. [1] - Nunes, Maria Leonor — “Pedro Costa: Um Cinema em Grande Plano.” in JL XXIX (1017), 2009, pp. 20-22.
- Filmografia Pedro Costa, O Sangue, 1989. Bibliografia COSTA, João Bénard da — O Sangue, Pedro Costa, 1989. Foco, 2009. Documento Eletrónico disponível em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-sangue.html (Acedido em 23 de Novembro, 2020). COSTA, Pedro — “A closed door that leaves us guessing” in Rouge 10, 2007. Documento Eletrónico disponível em: http://rouge.com.au/10/costa_seminar.html (Acedido em 26 de Novembro, 2020). COSTA, Pedro — “O cinema é um ofício, é como ser pedreiro” Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, 2009. Documento Eletrónico disponível em: https://www.snpcultura.org/vol_o_cinema_e_um_oficio_como_ser_pedreiro.html (Acedido em 14 de Novembro, 2020). CRUCHINHO, Fausto — “Pedro Costa: Relações de Sangue” in P: Portuguese Cultural Studies 3, 2010, pp. 33-42. |