exposição “René Lalique e a Idade do Vidro – Arte e Indústria”: uma questão de luz.
crítica.
Por Patrícia Ferrari. 30-12-2020 Reunindo cerca de uma centena de objetos provenientes de várias coleções, a exposição “René Lalique e a Idade do Vidro – Arte e Indústria”, patente no Museu Calouste Gulbenkian até 1 de fevereiro de 2021, dá-nos a conhecer a segunda fase da carreira deste artista francês, dedicada à arte do vidro. Da joalharia ao vidro Considerado o pai da joalharia moderna, René Lalique (1860-1945) quebrou as convenções da joalharia tradicional nos finais do século XIX, à qual atribuiu um novo valor artístico. Introduziu novos temas e materiais, recuperou métodos antigos e colocou a criatividade à frente do valor monetário, definindo as linhas da joalharia Art Nouveau. Uma das suas principais inovações foi a incorporação do vidro – já utilizado na joalharia, mas nunca com a dimensão escultórica que o artista lhe deu. O interesse de Lalique por este material foi crescendo de dia para dia, passando de pequenas aplicações nas suas jóias para a criação de objetos decorativos em vidro e metal e culminando na elaboração de obras inteiramente em vidro. Em 1907, uma proposta do perfumista François Coty marcou o início da transição definitiva de Lalique para o mundo do vidro. O artista alugou uma oficina nos arredores de Paris e, a partir de 1909, iniciou o fabrico de uma série de frascos de perfume para Coty, recorrendo pela primeira vez a métodos de produção industriais. Em 1912, exibiu as suas jóias uma última vez, dedicando-se inteiramente ao vidro a partir de então. Além dos frascos de perfume, a sua produção incorporava um diversificado repertório de objetos, incluindo jarras, caixas, estatuetas, serviços de mesa, candeeiros, elementos de decoração arquitectónica, entre outros. Tal como havia feito enquanto joalheiro, Lalique desenvolveu novas técnicas para trabalhar o vidro e modernizou as suas formas, aderindo à sobriedade da estética Art Déco, que se encontrava ainda a dar os primeiros passos. Extremamente dotado e engenhoso, René Lalique foi um homem de vanguarda que acompanhou o contexto artístico do seu tempo como um verdadeiro metrónomo. Porém, não se limitou a seguir os passos alheios, dançou a sua própria coreografia ao som da modernidade. Da Art Nouveau à Art Déco, foi, acima de tudo, um inovador e criador de tendências. Em 1921, na sequência de um plano de reestruturação económica após a Primeira Guerra Mundial, Lalique abriu uma fábrica na vila de Wingen-sur-Moder, na Alsácia-Lorena, onde deu continuidade ao seu trabalho. Aqui, o artista manteve o processo criativo e as técnicas aplicadas. Contudo, as suas peças passaram a ser produzidas em quantidades superiores, em séries de centenas e, nalguns casos, de milhares de exemplares. Durante a década de 1930, nos últimos anos da sua carreira, Lalique dedicou-se às possibilidades arquitectónicas do vidro, desenhando um vasto conjunto de espaços, desde o interior de paquetes e carruagens de comboio a simples salas de estar, capelas, fontes e lojas. A exposição organizada pelo Museu Calouste Gulbenkian, em parceria com o Musée Lalique, permite-nos revisitar todos estes momentos do percurso do artista e entender a evolução da sua obra. Uma questão de luz Mas porquê este interesse pelo vidro? Em primeiro lugar, a maleabilidade deste material cedo cativou o interesse de Lalique, facilitando a execução das suas ideias. Por outro lado, o vidro era também um meio de criação mais rentável, o que possibilitou ao artista reduzir os gastos de produção e aumentar os lucros. Contudo, o motivo mais forte deste entusiasmo estava noutro elemento: a luz. Sabemos através da sua neta, Nicole Maritch-Haviland, que Lalique era um grande admirador de vitrais, visitando com frequência as catedrais góticas de Reims e Chartres. Enfeitiçado pela cor e pela luz, o artista começou por replicar estas características nas suas jóias, através da aplicação de esmaltes translúcidos, pedras preciosas e, claro, do vidro. Estes materiais permitiram-lhe captar a luz, um componente que foi transversal a toda a sua obra. Como que numa reminiscência impressionista, Lalique dedicou-se aos efeitos luminosos das suas criações. Procurando a melhor forma de dominar a luz e utilizá-la como material artístico, criou peças e ambientes plenos de leveza e elegância, por vezes tocados por uma aura mística. Ao longo da sua vida, Lalique procurou a beleza e a luz de forma incessante, como que numa busca pelo Santo Graal. Ambas resplandeceram na sua obra, encantando até o mais distraído dos observadores. Para lá da arte: um artista empreendedor Os vidros de René Lalique revelam-nos não só a sua mestria enquanto artista, mas também enquanto empreendedor. Lalique foi um dos poucos artistas dos inícios do século XX a encontrar a harmonia entre a arte e a indústria. Recorrendo a uma mecanização gradual dos processos de produção, o artista primou sempre pela qualidade estética dos objetos que fabricava, nunca deixando por completo a utilização da mão-de-obra humana. Para Lalique, os artesãos tinham um papel fulcral no funcionamento das suas fábricas, pois eram a garantia de que cada peça era feita com cuidado e atenção, como se de uma obra única se tratasse. O grande feito de Lalique foi a sua capacidade de se adaptar à evolução dos tempos, industrializando a produção das suas obras sem reduzir o valor artístico das mesmas. Assim, garantiu o sucesso financeiro e a sobrevivência da imagem requintada da sua marca. A esta conquista associou-se um outro propósito: tornar a arte e a beleza acessíveis ao maior número de pessoas possível. A redução dos custos de produção não só permitiu a Lalique aumentar os seus lucros, mas também diminuir o preço de algumas das suas obras, alcançando uma clientela mais ampla e diversificada. Da mesma forma, o foco na elaboração de peças de uso quotidiano e a criação de obras de arte pública, como fontes e fachadas de edifícios, demonstraram a sua vontade de levar a beleza aos objetos do dia-a-dia, tornando a arte num bem público. |