valores da arte contemporânea.
Um dos melhores exemplos para servir como entrada da reflexão em torno dos princípios que regem o sistema da arte contemporânea é a obra Comedian, de Maurizio Cattelan, apresentada na feira de arte Art Basel Miami Beach. Não obstante a intuito de tirar a casca ao fruto, para lhe ver o caroço, esta não deixa de ser uma reflexão colada a fita-cola, carecendo de um fixante mais eficaz. Todavia, havendo apetite, uma frutinha calha sempre bem.
A obra em questão causou polémica, na altura em que se tornou largamente pública, afectando sistemas digestivos não acostumados e outros afeitos a este tipo de ingestões. A razão principal foi o preço de venda, de duas destas peças (de fruta), duma série de três, ter sido 120 000 dólares, sabendo-se que a restante também foi dada como vendida mais tarde. Se uma banana colada com fita-cola à parede de um stand de uma das maiores galerias do mundo (Perrotin) numa das maiores feiras de arte do mundo causou o estranhamento guloso, a quantificação em seis dígitos despertou o apetite mediático e regurgitações de teores vários. O estranhamento que causa o fosso que separa o preço real da matéria prima do preço de venda, após transformação de um trabalho conceptual e não técnico, como é sabido, não é nada de novo na arte contemporânea. Recorramos ao que disse Arthur C. Danto nos anos sessenta forjando o conceito de artworld: “Ver algo como arte requer algo que o olho não consegue criticar – uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento de história de arte: um artworld” [1]. O contexto dita o que é arte. A análise é teórica e conceptual. A contemporaneidade artística não só é fertilizada pelo conceito, como é este o seu fruto. É na conceptualidade que a arte contemporânea tem de ser analisada. Voltando ao exemplo abananado, não foram três bananas coladas com fita-cola que se venderam, mas sim, o trabalho de um conceito num contexto específico: execução da obra (por Maurizio Cattelan, não por um anónimo), presença da obra numa das maiores galerias numa das maiores feiras (certamente o impacto não seria o mesmo se tivesse sido apresentada numa exposição "amadora"), o próprio mediatismo que eventualmente o artista e promotores sabiam que iria existir faz parte das alegações de validação da obra. Até o próprio preço da obra pode ser pensado como participando do conceito desenvolvido pelo "comediante". Contabilizadas as bananas, temos uma perspectiva da casca. Contudo, por muito bom aspecto que tenha a fruta, só o sabor ditará a verdadeira qualidade. Justificar a arte contemporânea através do conceito é algo banal. Mas se realmente o problema é teórico e filosófico, como Danto alegou, há que analisar a validade e fundamento dos próprios conceitos que sustentam o brotar das obras. Em Arte, o conceito está como algo de abstracto que serve de justificação a qualquer coisa, algo de elástico que se estica ou aperta consoante o jeito que se tem de dar para lá encaixar o que se quer. Na filosofia, o conceito é concreto e complexo, algo sólido de onde se parte (sendo também desenvolvido e trabalhado para criar essa solidez e se chegar a ele). Sendo a raiz do problema conceptual (por conseguinte filosófico), a arte contemporânea, na concepção (produção artística) e na reflexão em torno das obras (análise crítica), deve seguir esse afã filosófico em todo o seu rigor. Preguiçoso que sou, não irei ter esse trabalho de análise ao exemplo de onde parti – banana que já deu azo a muitos batidos. Serve o mesmo apenas para estabelecer a linha condutora do que é o problema central do mundo da arte contemporâneo, o conceito, alertando para o facto de que este, artisticamente falando ou não, é um problema em si próprio. Ou seja, o conceito não é algo de imediato, que possa ser fundamentado pela aparência mediática (ironia). É algo de rico, no trabalho pensante que envolve. Uma obra cujo seu fundamento é dar que falar pelo preço que atinge é algo que tem “validade cultural” Valores que têm o seu fundamento na assinatura de artistas que funcionam no mercado como "Reis Midas " – estes são uma minoria, mas que ditam o comportamento do mundo da arte (tendências, práticas, validações). Não tenho uma resposta categórica para o problema. No entanto, creio que o maior prejuízo cultural é a primazia dos valores financeiros, desprezando os valores qualitativos (determinações que definem a obra). Esta forma de ver a conceptualidade e de justificar por qualquer meio as obras de arte através de conceitos pobres (não trabalhados) abre um facilitismo de fabrico de mercadorias-obras-de-arte e criação de “valores artificiais”. [1] - Danto, Arthur C. [1964], “The Artworld”, The Journal of Philosophy, Volume 61, Issue 19, p. 580 - Um texto de Júlio Costa. 12-01-2021 |